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Mulher má

O Caderno Negro

Um dia reconcilio-me contigo. E pronto, acaba-se o amuo de vez. Quando tinha seis anos, a minha mãe pegou em mim e nos gatos e meteu-nos a todos dentro do grande camião de mudanças. Foi a primeira vez que vi um camião de mudanças.

Eu, na estrada nacional

– também não sabia o que era uma estrada nacional, muito menos uma auto-estrada, pouca gente sabia o que era uma auto-estrada –, paredes meias com os móveis da sala de pernas para o ar, a olharem-me em sofrimento. Um mundo escuro pintado de arcas de madeira, caixotes de papelão e pilhas de cortinados amarrotados. Era o tempo em que ainda não sabia, de saber de verdade, que tinha nascido em ti e que a migração que agora tanto custava – eu e os gatos tristes a chorar – era só um voltar a casa. Era o tempo em que não se sabe que é preciso nascer para se ser.

E o camião lá chegou à Santa Cruz

– eu à frente, com o gato enrolado no colo, entalada entre a minha mãe e o motorista e sete ou oito caixotes mais mansos do que o gato. E é assim que me lembro de te ver pela primeira vez, um amontoado horroroso de casas a precipitar-se da encosta para o céu.

“Guarda, mas não guarda nada”, disse o motorista.

A minha mãe sorriu e eu fiquei para sempre congelada naquele momento. Enrolada no jogo de palavras, surpresa e inquietação, porque era o tempo em que ainda não sabia que as palavras foram feitas para jogar. Nesse dia, tranquei as bonecas no sótão e deixei-me enamorar pelos desenhos voluptuosos e traiçoeiros das letras. Nesse dia, enamorei-me por ti. Era Janeiro e tudo o que havia nas ruas era nevoeiro a flutuar, uma espécie de algodão doce orgulhoso, que fugia a qualquer investida e não se deixava tocar.

No filme da minha vida contigo, já era eu maior, fiz o caminho ao contrário. Pela auto-estrada, que eram tempos de outros luxos. Os tempos em que a geração de mulheres de preto da minha avó morria a conta-gotas. Só se dava pela morte por causa do sino a gritar, tão devagar que parecia chorar. Nós sabíamos que com as mulheres de preto se ia também embora a pobreza. E ninguém queria ser pobre. No meu capítulo contigo das capas negras e dos livros – eu quase doutora -, tu eras uma mãe ausente e eu uma filha adolescente que achava, por ser adolescente, que merecias morrer por me teres feito viver.

– Voltar nunca. Prefiro morrer.

Mais tarde, já eu mulher, conheci-te as manhas e as entranhas. E és pior que madrasta. Deixaste partir, terra difícil e caprichosa, todos quantos quiseste parir. Geração atrás de geração, um êxodo triste, constante e surdo. Os bisavós do Brasil. Os netos de Lisboa. Os tios da França. Os primos do Luxemburgo. Os vizinhos do Canadá. Nunca lhes deste a mão gelada, cidade deprimida e infeliz. Fizeste-os reféns, montanha ingrata, de uma biografia que começa e acaba, sem sentido, num berço frio que é preciso esquecer enquanto se é gente, enquanto se é vida.

Só se é alguém fora de ti.

E tu preferes ficar assim, sozinha com os teus arrufos. Nevas quando estás zangada. Escondes-te, traiçoeira, no meio do nevoeiro e finges ser poesia. Amargas a vida dos que ficaram em ti com o fogo das geadas. E seduzes os que regressam e não podem ficar.

Mas um dia reconcilio-me contigo. Enfrento-te, cidade medonha que vives meio ano mergulhada no nevoeiro. Perco-te o medo, terra orgulhosa que não tens céu e nem sabes chover. E assento arraiais dentro de ti.

Por: Rosa Ramos

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