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Morte à portuguesa

Está assente que os restos mortais de Aquilino Ribeiro serão em breve trasladados, do Cemitério dos Prazeres onde o escritor, falecido em 27 de Maio de 1963, tem estado sepultado, para o Panteão Nacional. Julga-se assim homenagear condignamente, isto é, com as sumptuárias fanfarras da oficialidade, um dos nossos principais romancistas, cuja grandeza aos olhos dos portugueses se tem mostrado ultimamente bem mais do que obnubilada. De facto a maior parte da obra de Aquilino acha-se desde há muito fora de mercado, o seu conhecimento além fronteiras continua praticamente nulo, e as gerações mais jovens nunca ouviram falar de ‘O Malhadinhas’, ou de ‘A Casa Grande de Romarigães’.

Dever-se-á tudo isto à fatal circunstância de se tratar de escritor caracteristicamente de Portugal, e por conseguinte irrelevante para as prateleiras da Europa, quando não antipático aos nossos minúsculos cosmopolitas?

A notícia da passagem das ossadas a Santa Engrácia precederia por escasso tempo, o que nos proporciona agora motivo de reflexão, o anúncio do propósito de conferir honrosa deferência ao cadáver de um outro homem das letras pátrias, Eugénio de Andrade, este mais recentemente desaparecido do número dos vivos. E o teor do «press-release» posto em circulação não deixaria aqui de denunciar o imaginário mortuário dos fautores do projecto, e o implícito teor das suas preocupações. Realmente o que se divulga é que foi aceite o convite, dirigido a um arquitecto, para produzir “o mausoléu do poeta, a erigir no cemitério portuense do Prado do Repouso”. Ignora-se quem terá sido o responsável pelo substantivo que pretende definir a morfologia da última residência de Eugénio de Andrade, mas não creio que pudesse ostentar-se maior pontaria em ferir a memória do bom-gosto de quem sempre se afirmou adverso a tudo quanto rescendesse a monumentalidade.

Se pensarmos entretanto que a concepção da dita tumba poderá vir a materializar-se num desses objectos perfeitos para a ilustração dos tratados de arquitectura, mas significativos da indiferença ao simples a-bê-cê dos afectos, não conseguiremos evitar que nos assalte algum susto. Custar-nos-ia muito ver o autor de ‘Escrita da Terra’ partilhar o estilo da sua morada com os novos-ricos pós-modernos que tanto se esgadanham por possuir, e ainda em vida, a sua mastaba minimalista.

Mais ou menos contemporânea destas foi a informação de que a tentativa de analisar o que porventura sobra de Dom Afonso Henriques, ideia contra a qual logo se insurgiram os púdicos da defesa do eterno repouso, acabaria por embater num desses caroços burocráticos, matadores da curiosidade, ou do impulso de descobrir, em que tão fértil se manifesta a nossa rotina quotidiana. Mas a verdade é que, afigurando-se a investigação muito mais saudável do que o estéril culto dos mortos, do exame do conteúdo do túmulo de Santa Cruz de Coimbra, e um dia, quem sabe, até mesmo da presumível jazida do moço Sebastião, seria de prever que resultasse algo capaz de melhor nos explicar na história, quer dizer, nos tempos que vão correndo.

Esperando que a higiene da incineração crescente venha a tornar ocioso o mero afloramento destas questões, não subsistirá a mínima das dúvidas por enquanto. A carcassa de Inês de Castro, rainha morta, continua a imperar triunfalmente sobre todos nós.

Por: Mário Cláudio

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