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Minimal

Selecção…Natural

I – A vidinha a vidinha a vidinha a vidinha a vidinha a vidinha a prestaçãozinha a vidinha a vidinha o fim de semaninha a vidinha a abstençaozinha a vidinha a cuequinha a vidinha a vidinha a missinha a vidinha a vidinha o coitadinho o segredinho a vidinha a vidinha o poupadinho a vidinha a vidinha a vidinha a queixinha a vidinha o sofazinho a vidinha a vidinha o filhinho na escolinha a vidinha a vidinha o sossegozinho o alternezinho a vidinha o teatrinho a vidinha a vidinha as feriazinhas a vidinha a vidinha a vidinha a vidinha a garagenzinha incluidinha a vidinha a vidinha a promoçaozinha a vidinha devagarinho devagarinho a vidinha a fintazinha a vidinha a vidinha o arranjinho o mais que tudinho as batatinhas a vidinha a vidinha a copulazinha sábado à noitinha a vidinha a vidinha a vidinha a reformazinha a vidinha o dinheirinho a vidinha a vidinha o dominguinho a vidinha o queridinho a queridinha os pasteizinhos as pantufinhas o arzinho a viajenzinha o zezinho a vizinha o sorrizinho de manhazinha devagarinho a virtudezinha o cuidadinho devagarinho a vidinha a vidinha a vidinha.

II – A vidinha lá fora, a vidinha a querer entrar, devagarinho, a vidinha a escusar-se graciosamente ao soco, ao pontapé, ao empurrão, aos cornos da verdade, a vidinha a crescer, a crescer numa voragem vegetal, imparável, a vidinha e as suas mil desculpas para não ser vidinha, a vidinha embaraçada por não conhecer a vertigem, o medo, o êxtase, a inquietude, a nudez, a vidinha a olhar para o relógio, a vidinha a querer passar por outra coisa, quando só quer ser vidinha, cada vez mais vidinha, exclusivamente vidinha, escancaradamente vidinha, eternamente vidinha, a vidinha superlativa e exdrúxula, a vidinha circunspecta, a vidinha a esconder as suas grilhetas, a vidinha a assoar-se, a vidinha a ir às putas, a vidinha a corar, a vidinha a vidinhar, a vidinha a puxar as ligas, a vidinha agorafóbica, a vidinha vestida de preto, a vidinha a crescer, a crescer, a vidinha a puxar a corda, a vidinha a tombar, graciosamente, é claro, a vidinha à minha espera.

III – A vidinha acorda. A vidinha irrompe na voz fanhosa do locutor, lembrando as temperaturas. A vidinha coçante, descolhoante. A vidinha que nos segue para todo lado, com palavras grandes e outras pequeninas. A vidinha a puxar para um passado que nunca existirá. A vidinha a chamar-nos, a chamar-nos, despudoradamente, para o habitáculo possível. Gostava de te dizer, de o dizer aos teus olhos para que me acreditasses, que as palavras existem gravadas na pedra contra o esquecimento. Gostava de te dizer só isso. Provavelmente depois nunca mais me verias e os teus olhos saberiam que eu mentira. Esta conversa diáfana terá sempre poucas ou demasiadas palavras. É impossível a urgência, como é impossível remetê-la ao vazio. Só os corpos e as navalhas ousam falar por dentro das coisas. E as palavras, temem, antes de tudo, impor-se no território dos outros. Mas isso foi antes e fora da vidinha. A tal que nos impingem nas escolas, nas cátedras, nos discursos edificantes, nos balcões da burocracia, na Cultura, nos dois minutinhos de publicidade bancária na rádio, prometendo o céu em troca de juros a 30%. No final vai-se ver e o fato nunca nunca está à medida. Então entra a vidinha, refulgente, gloriosa. A tal. A da mentira sufocante. A esdrúxula, a inquietante, a pasteurizante, a rasticolante. Lembram-se?

Epílogo – Por simples comodidade sazonal, em todas as passagens de ano se desenha um novo corpo, uma ambição diferente, uma projecção exaltada do futuro sem as hesitações do passado. Acontece que há na nossa circunstância uma fina camada de bondade. Tudo o resto é, ou pode ser, tido por conta de uma narrativa peculiar. Aquelas histórias que, com mais ou menos ilustrações, nunca deixarão de ser isso, histórias que contamos. Esta tessitura frágil, não. Ela pertence-nos, é património comum. Lá, nesse recanto, somos comunidade. Raras vezes nos detemos neste revestimento ténue. Aliás, quase nunca colidimos com este radical de simpatia. Simpatia enquanto inclinação pelas coisas, pelas pessoas, pelos lugares. Anda no ar, como pólen. Inventaremos então um novo estremecimento na terra que pisamos. O nosso tremor terráqueo. As nossas peles esticadas ao limite do medo. Como uma epidemia. É por isso que respirar é o primeiro de todos os actos políticos para este novo ano.

Por: António Godinho

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