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Milhões de Patinhos de Borracha

Acredito que o valor justo de um salário há de situar-se algures entre aquilo que o trabalhador quer e o que o empresário está disposto a pagar. Como é evidente, quanto maior for o lucro de um menor será o do outro, o que implica que cada cêntimo que um dos dois ganhe significa uma perda para a contraparte. Por isso, mais do que inimigos são concorrentes. Acredito também que o crescimento do lucro das empresas é desejável, porque implica maior remuneração do capital investido, o que é bom para os accionistas, mas também porque permite o crescimento, mais investimento, mais postos de trabalho e mais lucro outra vez, numa espiral em que todos saem a ganhar.

Também acredito que a ganância dos empresários, que procuram o lucro a todo o custo e muitas vezes o baseiam nos baixos salários que pagam é um encargo para toda a sociedade à custa do benefício de muito poucos: salários baixos implicam baixo poder de compra, baixa cobrança de impostos, diminutos contributos para a Segurança Social. São igualmente evidentes as consequências da ideologia que norteia muitas reivindicações salariais: a prossecução cega dos benefícios dos seus associados, indiferente às possibilidades de quem vai ter de pagar, vai levar muitas empresas ao encerramento e à perda de postos de trabalho; a ignorância sobre as novas circunstâncias do comércio internacional, associada àquela cegueira, vai levar obrigatoriamente à exportação de postos de trabalho para as economias emergentes, aquelas em que os pecados proibidos aos nossos empresários são condição de sucesso dos seus próprios empresários. Irónico, não é?

Mas ironicamente também, e regresso ao início, agora com dúvidas sobre o que parecia inicialmente tão evidente, tudo nos indica que teremos todos de consumir menos e por várias razões. Em primeiro lugar porque a recessão chegou, a cavalo da crise financeira internacional, que estrangula a capacidade de investimento das empresas e o financiamento para o consumo dos particulares; em segundo porque o planeta não suporta mais consumo, ou a manutenção do actual ritmo, por muito que custe à emergente classe média chinesa e a todos os que acreditavam que podemos prolongar indefinidamente a segunda metade do século passado.

Imagino um cenário. Uma fábrica enorme, que emprega milhares de trabalhadores. Produz patinhos de borracha amarelos, especialmente concebidos para flutuarem na água do banho (quem não tem, ou deseja ter um?). São praticamente iguais aos produzidos por uma fábrica de Shangai, só que custam o dobro. As encomendas diminuem mas os operários continuam diligentemente a executar o seu trabalho. Aumentam mesmo a produção, num assomo orgulhoso de zelo e os patinhos, indiferentes à sua baixa procura, continuam a sair aos milhões. Com o argumento da sua alta produtividade, os trabalhadores exigem aumentos salariais, que lhes são concedidos, aumentando ainda mais a diferença de custos para a fábrica de Shangai. Os patinhos acumulam-se nas traseiras da fábrica e, não conseguindo ser escoados para o mercado, acabam por resvalar para a ribanceira, o rio e depois o mar. Flutuam hoje aos milhões e milhões, no meio das vagas do Atlântico. Lá longe, na fábrica, há mais milhões a serem produzidos todos os dias, e todos os dias são escoados aos milhões pela ribanceira abaixo.

Por: António Ferreira

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