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Meu querido mês de Agosto

O Caderno Negro

Cinco. As estrelas são os únicos candeeiros da noite. Nunca soube o que era uma casa a arder, mas a sirene dos bombeiros ouvia-se pela cidade toda, garras a tomarem conta da madrugada. Até os grilos bravos se assustavam debaixo da latada. A guerra era um estado de alma num sítio chamado Golfo e na nossa casa, sempre quieta, passava o comboio – que um dia vomitou uma garrafa de plástico por uma das janelas. Acabei a noite de Agosto na urgência, com uns pontos de nada na testa. Dias depois, um dos móveis gigantes da sala caminhou, vingativamente, contra mim. O resultado foi sete pontos e a cabeça dentro de um táxi, enrolada numa toalha semi-ensanguentada. Ainda levei três pares de estalos por acréscimo: é lá possível que os móveis se mexam, rapariguinha tonta. Mas mexiam, que eu bem os via por entre as frestas da porta de madeira da casa da Companhia. Mexiam-se e dançavam a noite toda, uns com os outros. Dançavam uma música esquisita, que só os móveis eram capazes de ouvir.

Sete. Os móveis deixaram de dançar e vieram os fantasmas – tristes demais para poderem dançar. Ficavam sozinhos e amuados, ao cimo do vão da escada, chateados por serem só fantasmas. Muitos Agostos depois, ouvi num filme qualquer que só as pessoas tristes não sabem dançar. A frase não fazia referência a fantasmas. Só a “pessoas”. Se eu fosse fantasma também levaria a mal. Graças aos fantasmas, angariei vários pares de estalos: é lá possível que existam fantasmas, rapariguinha tonta. Mas existiam. Um dia, disse-me um assim: “Os teus olhos são rasgados”. E eu imaginei os meus olhos, duas folhas de papel, prontas a rasgar no Outono. Agarrei nos meus olhos e numa caneta e escrevi nos meus olhos que os meus olhos um dia haviam de se partir. Como se fossem uma jarra com flores e água. Quando se partissem, haviam de chorar.

Doze. O pior dia do ano era aquele em que acabava a escola. O autocarro das cinco e dez só tinha ida. E era como se depois do Verão não voltasse a haver Outono. Ciclicamente, as pessoas emigravam e apetecia chorar. Ainda hoje, as pessoas emigram volta e meia e emigramos nós também. E ainda apetece chorar. A aldeia, a sombra da árvore velhinha da fonte, a avó de preto a regar no Chão ou a lutar contra a Carriça, a vaca, o silêncio das noites de Verão. O rádio a tocar uma música antiga qualquer. O virar da página de um livro a fazer eco no meio da escuridão. E uma voz a gritar vinda de uma profundeza qualquer: é lá possível ler palavras no meio do escuro, rapariguinha tonta. Mas era. As histórias vinham no meio do sono, para escapar à tristeza. Os meus olhos eram, afinal, uma par de jarras. E partiam-se muito.

Treze, catorze, quinze. Primeiro prazer: fazer a lista para, a seguir, fazer a mala. Chegava o dia e chegava o comboio. Pampilhosa e o regional até ao Porto. Um dia, a estação de S. Bento pela primeira vez. Parecíamos tão grandes e éramos tão pequenos, afinal. Pequenos demais para amar e grandes para morrer de saudade cada vez que chegava Setembro. E a voz outra vez, já resignada: é lá possível morrer de saudade, rapariguinha tonta. Mas era. E foi assim que aprendi a escrever: a morrer de saudade e o coração a ditar cartas de amor na doçura do Outono. Sempre preferi o Outono, porque sempre preferi chorar. Há gente que batalha uma vida inteira para ser feliz; eu não me importo que os meus olhos sejam um par de jarras tristes.

Dezasseis. As festas da cidade. Uma rádio ao acaso. Tu, jeito desengonçado, meu amor de uma vida. Quantos amores tem uma vida inteira? Todos os são amores diferentes. Medem-se pelo cheiro, pelo desejo e pela música. Há amores sem desejo, mas não há amores sem cheiro, nem amores sem música. O teu amor cheirava a amoras, talvez por isso não tenhamos dado por ele, porque as amoras estavam em toda a parte. Para mim, não eras amor. Eras amoras. E o teu amor media-se pela música que a rádio tocava noite fora. Durante anos, mediu-se pelas palavras de uma cassete em que se ouvia a tua respiração entre palavras e os teus dedos a virar páginas. Era, afinal, uma despedida. Contavas como o mundo era redondo e não quadrado. E que, por muito que tentasse desafiar as arestas do planeta, não havia nenhum cabo Bojador para dobrar. O mundo é redondo, rapariguinha tonta. Onde é que já se viu um mundo quadrado? Agosto tem tantas verdades como insolações no coração.

Dezassete. Um dia, sentei-me com o meu pai no campo. Havia o sol, os grilos, a brisa constante que vem da terra e não é vento. E o meu pai, proximidade assustadora. “Viver é fácil”, disse-me. Passaram-se anos. Hoje, o meu pai são duas mãos enrugadas. Diz-me que viver é difícil. Que fácil é morrer. O que é que a vida faz com a gente? Deixa passar os Agostos, num virar mudo de páginas de calendário, e quando damos conta somos outra coisa qualquer noutro mês qualquer noutro ano qualquer noutra vida qualquer que nunca quisemos viver. Viver não é mais do que fugir à morte, rapariguinha tonta. Dorme-se, come-se e sobrevive-se só para se lhe tentar escapar. No fim de tudo, sobram os móveis a dançar e os fantasmas pé-de-chumbo.

A tua cassete perdeu-se no meio de uma pilha de caixotes no sótão. O que eu queria, agora, era outra cassete que falasse de ti. Estás igual. O mesmo jeito desengonçado, apressado e inseguro. Se ainda fosse Agosto, escrevia-te uma carta a falar de tristeza e solidão. Só para tu rasgares. Mas agora já não há cartas – só tristeza e solidão. E os meus olhos, par de jarras tristes.

Por: Rosa Ramos

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