1. As grandes questões nacionais – o défice público e o desemprego – deixaram de repente de o ser. Segundo os zelotas da boa consciência esquerdista descendentes do séc. XIX, o grande problema do país passou a ser… a ausência de Cavaco Silva na cerimónia fúnebre de Saramago. Os representantes do bom povo de esquerda, desde Barroso a Alegre, passando por aquele deputado gordo do BE pelo Porto cujo nome me escapa, já vieram excomungar o Presidente, munidos da respectiva Bula. Ao festim das virgens ofendidas juntaram-se uns patuscos exilados, com pronúncia esquisita e sabor sul-americano, que ouvi ontem na Antena 1. Onde pontificam num programa de opinião e tresandam a reaccionarismo _olit revolucionário, imagem de marca dos anciãos compagnons de route. Desta forma agradecendo a hospitalidade de um país que os recebeu insultando os seus órgãos de soberania. Pois bem, Cavaco não foi e fez bem. Enviou o Chefe da Casa Civil em seu lugar e uma mensagem para ser lida na cerimónia. Que mais poderia fazer? Ir e ser chamado de hipócrita? Não era um funeral de Estado, pois não? Mas cedo os cry babies do costume conseguiram transformá-lo numa manifestação velada e numa prova de força destinada a criar um facto político inócuo. Que nada honra a memória do próprio Saramago. Acontece que é de fait divers destes que andamos precisamente mais necessitados…
2. O poeta é um fingidor. Porque o desencanto nunca é filosófico, mas poético. Porque apenas a poesia é capaz de representar as contradições sem as resolver, compondo-as numa unidade superior, elusiva e musical. Enquanto esse desencanto, ao mesmo tempo que corrige a utopia, moderando o seu pathos profético e finalista, reforça o seu elemento fundamental, a esperança. Pois que a esperança não nasce de uma visão do mundo tranquilizadora e optimista, mas sim da dilaceração da existência. Vivida e sofrida sem véus. Que cria uma irreprimível necessidade de resgate perante o mal. O mal que é simplesmente a radical insensatez com que se apresenta o mundo. A mesma que exige que a perscrutemos em profundidade. O poeta é um fingidor, nada mais. Porque não hesita em denunciar uma ferida profunda que lhe coloca dificuldades na realização plena. Tanto mais que “ambicionar viver é coisa de megalómanos”, como escreveu Ibsen. Querendo com isto talvez dizer que só a consciência do árduo e temerário que é aspirar à vida autêntica pode permitir que nos aproximemos dela. Tão completamente que até parece dor a limalha irisada que nos cobre, nesse momento. Como que numa exclamação incontida de glória…
3. Cavaco apelou à Nação para umas feriazinhas caseiras, durante a silly season. O Ministro Vieira da Silva veio logo contrapor que, se todos os chefes de Estado fizessem o mesmo pedido, voltávamos à autarcia global. Posições respeitáveis, ora essa! Mas que todavia só me interessam pelo que revelam nos entrefolhos. Cavaco seguiu a sua intuição particular de olhar para a realidade segundo uma vertente económica. Inatacável na perspectiva do acentuar do défice da balança comercial. Vieira da Silva, por sua vez, quis ser cauteloso. No caso, para espetar uma farpinha no PR, comprando uma mini guerra do alecrim e da manjerona em nome do seu amigalhaço Alegre. Cavaco parece acreditar num esforço patriótico colectivo, que ultrapasse a simples colocação das bandeiras nacionais nas varandas. Quer uma abdicação do hedonismo provinciano que nos caracteriza, na sua área mais sensível: o lazer. Em troca de quê? Da austeridade de um gesto amplo, liberal e magnânimo. Por seu turno, Vieira da Silva não renega a sua tradição esquerdista dos direitos adquiridos. Um desiderato de que a firme recusa na devolução de territórios anexados pela ex União Soviética é a feliz tradução na real politik. O Ministro quis ser mais deste mundo: “aproveitem enquanto há, pois a sopa dos pobres da UE está quase a fechar!” Quis ser modernaço, arauto de uma versão de cosmopolitismo muito querido em certos meios, do tipo esbanjador e auto-complacente. Mas o seu erro foi simultaneamente a virtude de Cavaco. Passo a explicar. O Presidente não ignora que este tipo de apelo é mais fácil e com maiores garantias de êxito, se efectuado em Portugal e em tempo de vacas magras. A grande maioria dos portugueses vai deitar contas à vida e perceber que, nesta matéria, só vai quem pode. E agora, até mesmo fazer de conta que se pode vai custar os olhos da cara. O efeito do pedido foi por isso pouco mais do que placebo. Valeu pela oportunidade política. Por outro lado, se fosse a chanceler Merkl a fazer apelo semelhante aos seus concidadãos, o risco seria bem maior. Os alemães, por norma, acatam um desígnio colectivo de âmbito nacional com maior acuidade do que os portugueses. Pelo que, em meu entender, nada teremos a temer: os cidadãos do norte da Europa continuarão a buscar tranquilamente as paragens cálidas do meio dia para seu veraneio. E os viajantes portugueses, os que não escolhem época nem pedem licença, irão continuar a partir. E porventura a chegar.
Por: António Godinho Gil