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Mergulhar e afundar

Tresler

1. Lembrava-se como se fosse hoje. Tinha sido uma sensação idêntica à que agora experimentava no autocarro para casa. Uma dor interior lancinante e a vontade irreprimível de chorar, torneiras abertas diante do espanto dos passageiros. Desviava os olhos para a janela interrogando-se sobre o porquê desta irrupção em plena viagem mas conhecia bem as raízes do problema. E no entanto ninguém lhe tinha feito mal, era só aquele jeito dele, incorrigível tímido e solitário que aprofundava as dores, as cavava com persistência, culpando os outros estrategicamente pelas suas fraquezas e frustrações para mais tarde acabar por apontar apenas para si próprio. Tinha sido assim há 30 anos, não lhe tinha chamado depressão, hoje as leituras traduziam-lhe por essa palavra esse apelo de dentro. Chegou a casa um quarto de hora de lágrimas depois e afundou.

2. Na verdade, para além do seu feitio estranho, seria agora um vasto período de nojo, nojo no trabalho onde acabaria por começar a faltar, onde perderia as suas responsabilidades e talvez a sua reputação; nojo na relação com os amigos, que se afastariam diante desta espécie de zombie sem reação, que ia demorar até recuperar; nojo na relação com a mulher, relação já de si debilitada pela usura dos anos. Ficaria enfim para sempre o apodo de deprimido, a colar-se a ele quando e se ele viesse a recuperar. Lembrava-se agora do Cerdeira, antigo colega de colégio, a passear pelas ruas da cidade de rosto perdido, discurso tolo e aparência desmazelada, a olhar fixamente para as pessoas, que se afastavam, mesmo os amigos, após duas palavras. Aí estava agora ele com a mesma mazela, um aspeto de “passado dos carretos”. De repente a sensação de escorregar para um poço escuro ou um túnel frio sem clarão de saída, só as paredes húmidas e greladas a brilharem na escuridão. Quem me acode?

3. A vida é toda ela feita de construções miríficas que se desagregam pelas deceções quotidianas, o que por sua vez institui uma normalidade da mudança, da frustração e da adaptação. Mas aquilo que julgamos estabilizado muda-se a cada passo e “não se muda já como soía”, confirmando o que dizia o poeta. Dessa habituação à deceção e da resposta que lhe soubermos dar nascerá o equilíbrio pessoal. Cada um na sua idiossincrasia constrói-se mais sólido ou mais frágil e assegura o futuro, estabelecendo metas, repondo-as após os falhanços, sendo “ele próprio”. Mais do que a realização de uma utopia, a construção da felicidade será esse reconstituir das metas pessoais a cada passo, sendo reformista em vez de deitar tudo abaixo ou em vez de se deixar ir abaixo.

4. Há momentos em que a depressão ou a última etapa antes dela dá lugar ao suicídio. Este não nasce num momento, por um repente, uma razão específica, uma vontade extrema de ferir alguém ou de gritar que não se vale nada. É o culminar de um conjunto de “ruturas” que se foram fazendo, de perdas e de conflitos que os próximos da vítima não foram detetando. Muitas vezes aquelas ruturas começaram com acontecimentos marcantes e humilhantes na infância ou na adolescência, uma separação, uma violação, um choque. O suicídio tornou-se assim uma construção, um culminar de frustrações aprofundadas. Os gritos, repetidos, foram surdos. Daniel Sampaio cita Stengel que traduz o grito invisível dos suicidas: «Quero morrer, façam alguma coisa por mim!» e Shneidman: «O suicida é aquele que corta a garganta e ao mesmo tempo grita por socorro».

Se a depressão é destrutiva numa família, que diríamos de um suicídio? Para além da sensação de que poderíamos ter identificado mais sinais se estivéssemos atentos e se gostássemos mais da pessoa que morreu, sensação que fica a remorder em nós (portanto a causar remorsos), o resto é do domínio do imponderável. Aquilo foi construído por aquele indivíduo, as razões construiu-as ele e moldou-as ele, é ele o responsável. Se é jovem, vai doer-nos muito. Portanto mais atenção aos sinais dos jovens, às fugas de casa, à baixa autoestima, ao abuso do álcool ou das drogas, ao perfecionismo exagerado, ao isolamento de atividades sociais! E se algum dia a desgraça bater à porta, que o último caminho seja a culpabilização de quem fica.

5.Os Guias sobre a depressão apontam para as variantes mais graves um mix de medicação e de psicoterapia e uma série de recomendações simples que servem para qualquer mal da alma. É o caso de procurar pretextos para rir nas anedotas, nos filmes cómicos ou no próprio exercício teatral de rir; de escrever um diário a partir do que de positivo se fez ou das tarefas que se conseguiram cumprir; de prestar cuidados a outra pessoa, a um animal ou a uma planta; de reescrever os incidentes do passado que nos perturbam mas vendo-os pela perspetiva de uma simples testemunha; de procurar a luz e o sol; de desenvolver atividades criativas, por exemplo, a escrita, a costura, a jardinagem, etc. A solidão pode mesmo na poesia forjar a força e a resistência: “Sim, minha força está na solidão. / Não tenho medo de lobos, / nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, / pois eu também sou o escuro da noite.” (Clarice Lispector).

Que o Menino Jesus nos livre desta maldição! Feliz Natal!

(Depressão, Coleção Guias da Saúde, Impala, s.d; Daniel Sampaio, Tudo o que temos cá dentro, Ed. Caminho, Lisboa, 2000)

Por: Joaquim Igreja

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