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Memórias de uma romaria

Este fim-de-semana, a tradição cumpre-se em Aldeia do Bispo por ocasião da festa de Santa Cruz

A romaria de Santa Cruz é secular. Festa das merendas, da devoção, das procissões, das arrematações, dos bailaricos populares e dos grilos. Festa, por excelência, das carreiras da Joalto, onde se dava as boas-vindas à Primavera, junto à pequena ermida, que serviu de ponto de encontro a gerações sucessivas.

A festa do próximo fim-de-semana é de Aldeia do Bispo, mas também das povoações vizinhas e da própria cidade da Guarda, que, antigamente, comemorava o feriado a 3 de Maio, dia de Santa Cruz, para assinalar a descoberta do Brasil. A tradição vai fazendo história, mas este ano há uma particularidade. Será lançado, no sábado, um livro que pretende fazer uma síntese daquilo que tem sido a romaria, «indo o mais atrás possível nas suas origens», explica Aires Almeida, um dos mordomos deste ano e coordenador da publicação. “Festa de Santa Cruz – festa de identidade de uma comunidade local, Aldeia do Bispo” é o título da obra que será apresentada à noite, momentos antes da saída da procissão da ermida em direcção à aldeia. Na Santa Cruz os festejos repartem-se por três dias. No domingo cumpre-se uma demanda com 67 anos, já que, impreterivelmente, a Banda Nova de Manteigas percorre as ruas da aldeia. Ritualizado está também o momento das arrematações.

Mas aqui os sinais do tempo já se fazem notar. Aires Almeida recorda que, antes, a população procurava oferendar, para além de dinheiro, queijos, bandejas de cascoréis ou biscoitos, chouriça, bola doce, uma garrafa de vinho ou a melhor peça do seu porco. Dádivas “leiloadas” sobretudo pelos visitantes. Hoje, as ofertas são diferentes: «Há de tudo um pouco, desde relógios a outros objectos», explica. Depois, à noite, é tempo de dar um pé de dança no bailarico popular. A segunda-feira sempre foi um dia mais «comunitário», sobretudo por causa das merendas. O conceito é simples: «As famílias juntam-se nos campos para merendar em conjunto», refere. No entanto, este é um hábito que parece esmorecer. «Estranhamente, está a cair no desuso, porque cada vez que morre um habitante da aldeia cai-se num vazio enorme e o chamado “período de nojo” parece prolongar-se mais no tempo, em detrimento desta tradição, que é encarada pelas famílias como uma manifestação exterior de alegria», justifica o mordomo.

O primeiro registo desta festa remonta a 1690. Na memória da região, trata-se de uma romaria profundamente associada às carreiras da Joalto, «que faziam o percurso Guarda-Covilhã, passando pela Santa Cruz», recorda Aires Almeida. O posicionamento estratégico da ermida permitiu-lhe angariar alguma importância. Hoje, e apesar das naturais mudanças que o avançar dos tempos vão trazendo, o essencial da tradição ainda é o que era. A romaria de Aldeia do Bispo continua a atrair muitos visitantes. Durante os três dias, misturam-se o sagrado e o profano, populares e forasteiros, num frenesim que acontece apenas uma vez por ano. Porque, afinal, é dia de festa. E, para alguns, sinónimo de negócio. São muitos os feirantes que escolhem o local para montar arraiais. E antes… antes só havia as amendoeiras que vendiam os santinhos, os rebuçados de açúcar e as amêndoas. Retratos de outros tempos. O mesmo fio da memória que faz lembrar os versos “Ao senhor de Santa Cruz um raminho hei-de eu levar”.

Rosa Ramos

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