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Medo e culpa

Tresler

Um amigo meu acaba de ser assaltado em Lisboa. E desta vez os ladrões tocaram mesmo, seguraram mesmo enquanto roubavam do Multibanco. Não foi um roubo de carteira de que só damos conta mais tarde. Foi humilhante e eficaz numa rua deserta às duas da manhã. Disse-me que teve medo. E que foi tomar banho a seguir.

De que temos medo no dia a dia? Dos assaltos, do assédio/acosso de um estranho, do perigo de um réptil, da violência, do bramido de uma explosão. Em resumo, do que invade sem pedir licença o nosso território. De um assalto em que fomos apanhados envergonhamo-nos porque fomos ingénuos ou fracos, do assédio porque não infligimos medo a quem nos perseguiu, das cobras porque sabemos (pelos livros) que na realidade elas não vão morder-nos mas apesar de tudo temos medo, de uma explosão porque o seu estampido nos esfarela os tímpanos e o cérebro e nada de mais impressivo podemos encontrar semelhante à morte. Ficamos reduzidos a um niquinho diante destes gigantes e ainda frente àquilo que nos desfavorece a imagem: o receio do insucesso pessoal ou dos nossos próximos, a consciência de um pensamento minoritário que não conseguimos ou não queremos mudar, uma idiossincrasia que fere quem nos quer uniformizar.

Ter medo é pensar que não temos defesas contra um mal. Quando temos medo sentimos os alicerces ir abaixo se não vemos nada a que nos agarrar. Nessas alturas gritamos a outros por socorro (alguns), ou então (outros) apelamos expressa ou interiormente a um milagre e acenamos com uma vela a um santo ou fazemos-lhe uma promessa, a desafiá-lo. Os ex-votos retratam esses momentos de aflição em que qualquer ajuda racional é impossível, em que o sobrenatural se afirma e fica como prova, mesmo que as pessoas em causa não tenham a certeza que aquilo foi milagre. E, embora não o contemos, todos já tivemos esses momentos de força-fraqueza em que, entre um cá e um lá que tememos e respeitamos, “prometemos” alguma coisa a “algo” que julgamos transcendente. Entramos numa igreja e acendemos uma vela ou prometemos interiormente ir em breve a Fátima (ou ao menos ao Senhor dos Aflitos).

Como se ataca o medo? O medo educa-se e deveria estar causticado após os primeiros anos de vida. Ao menos o medo desmesurado do futuro. Esse, na passagem da idade, apaga-se nos momentos iniciáticos, enrijando os ossos e ultrapassando-se pelo desafio lançado por alguém a si mesmo. Nas religiões são os ritos e os sacramentos que marcam esses passos mas na vida comunitária são também as provas a que nos submetemos com os da nossa idade nos jogos ou nas aventuras para lá das fronteiras estabelecidas. Essas vitórias (simbólicas) contra os medos substituem outras que nunca conseguiremos conquistar mas fazem as vezes delas. Como as guerras evitadas pela irrupção do desporto e sua generalização: o que vencemos a brincar serve-nos para substituir as outras lutas. Vêm-me à memória Pedro e Pitanga, miúdos heróis em “Bandeira Preta” (livro que guardo na memória desde a juventude), a desafiar à noite o medo de estar uma hora preso a uma árvore no meio da mata e a disposição surpreendentemente tranquila após esses momentos em que tremeram no mais íntimo de cada um e em que as personalidades se cimentaram.

A educação contra o medo nem sempre resulta assim tão clara. Outros dizem mesmo que é um jogo de longa duração. E que uns medos substituem outros. Alguns acabam por descobrir em certos momentos que um susto vive cá dentro, pronto a furar-nos a vida. A condição de pai ou mãe vai-nos aterrando em fases diferentes sobretudo relativamente às “crias”: primeiro o medo da doença delas; depois o medo do insucesso ou menor sucesso escolar e a sensação de não estarmos a orientar bem; com os filhos já adultos vem o medo do desemprego, da não-afirmação ou da dependência social e económica. Em todos estes momentos o sentimento de culpa, de que algo poderia ter sido melhor se… É também de medo o ambiente político do momento, esta ausência de esperança, este presente em que não se vê horizonte, tudo barrado à nossa volta, parede de que ainda não encontrámos saída a não ser para outros países. Medo do futuro.

Entretanto é na amizade, na arte, no lirismo e na ironia que ganhamos força contra o medo: de repente passa-me na cabeça aquela canção de Dick Annegarn em que fulano de tal, tímido e débil, quer pertencer ao Clube dos Caçadores Destemidos e se embrenha na floresta esperando pelo lobo para, com um spray que atordoe a fera, poder ao menos levar uns “tufos de pelo” para mostrar aos outros sócios que a enfrentou. À falta de melhor…

(Branquinho da Fonseca, Bandeira Preta, 1956; Dick Annegarn, Paladin Braconnier, 1975 http://www.youtube.com/watch?v=8dfZ_ZfMlg0)

Por: Joaquim Igreja

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