Não, não é o tratamento verbal e desbocado dirigido em título a quem julgam. Nem sequer são epítetos que eu alguma vez tenha proferido, muito embora, em certas circunstâncias e a certas pessoas de poder, o tenham merecido.
Acontece que hoje me deu no bestunto para recuar cerca de uma centena de anos e trazer à memória, neste bosquejo de crónica opinativa, a mal recebida lei da separação da Igreja do Estado no distrito da Guarda.
Era então bispo da Guarda, D. Manuel Vieira de Matos (que, aliás considero uma das grandes personalidades da Guarda no séc. XX), o qual tinha entrado para esta diocese como arcebispo-bispo em 4 de Junho de 1903. Foi ele que fundou o jornal “A Guarda”, que começou a publicar-se em 1904 e fundou no Seminário a tipografia de onde resultou a Casa Véritas.
A maioria dos sacerdotes de Trancoso não apoiou a separação da Igreja do Estado, em 1911, que começou a vigorar em Junho daquele ano. Mas em Trancoso, embora fossem em pequeno número, os “livre pensadores” e o jornal semanário “A Folha de Trancoso”, criticavam os padres e os católicos que pretendiam desobedecer à lei do ministro Afonso Costa. Roma, através da Sé da Guarda, pressionava os padres para não aceitarem as pensões do Governo e para abandonarem as paróquias em determinado dia, sob pena de serem considerados apóstatas. O jornal de Trancoso considerava os bispos, autores do manifesto, “réus de alta traição”, enquanto no Parlamento o dr. Bernardino Machado, se referia ao clero de Trancoso: “o clero paroquial de Trancoso comunicara aceitar a regulamentação e depois alegou que o bispo (D. Manuel Vieira de Matos) exercia pressão para que o não fizesse. Mandei ali uma pessoa de confiança investigar, e, caso se prove que o prelado exercia coacção, será castigado.”
Surgiu então a guerra entre “A Folha de Trancoso” e o bispo da Guarda. A tal ponto que, no seu número 1029, de Outubro de 1911, escreveu que o bispo era um “masmarro” e “reaccionário conhecido pelas suas ideias jesuíticas”. Sem mais respeito pelo prelado, vibrando nas páginas impressas, o jornal continuou desta guisa: “é certo que as suas vozes têm o triste e significativo condão de não chegar aos ouvidos dos católicos, como as daquele quadrúpede, de orelhas grandes e crina curta, não chegarem ao céu”. E, mais adiante, reforçou, num lamento: “ e lembrarmo-nos que Trancoso recebeu a dentro das suas vetustas muralhas, que rescendem a liberdade e patriotismo, o masmarrão mais reaccionário dos tempos actuais”.
De facto, oito anos antes, ainda o prelado não tinha completado meio ano no bispado da Guarda, tinha feito uma visita a Trancoso. E o mesmo jornal, datado de 27 de Setembro de 1903, com uma fotografia do bispo a ocupar toda a primeira página, colocava, sob a gravura, em parangonas, a frase – “Ecce Sacerdos Magnus”.
O bispo D. Manuel Vieira de Matos, de quem o seu biógrafo escreveu que “na aliança da virtude com o talento não tinha competidor”, para além do enxovalho escrito, viria a ser castigado pelo Governo: proibiram-no de residir durante dois anos dentro dos limites do distrito; concederam-lhe um prazo de cinco dias para abandonar a Guarda. No testemunho de acusação vinha assinalado que o arcebispo-bispo da Guarda era o prelado que mais tinha desrespeitado a Lei da Separação, negando ou pondo em dúvida os direitos do Estado e que o mesmo prelado ordenara que um seu subordinado “se dirigisse à comarca de Trancoso para compelir e sustar a Lei da Separação, já aconselhando a rejeitar as pensões”.
Correu pelo povo o alarme que o Governo pretendia retirar os santos e alfaias das igrejas. Na freguesia de Cótimos, em Trancoso, tocaram o sino a rebate e com gritos de “morram” e “matem-se” apedrejaram a carruagem dos funcionários que iam tão só fazer o arrolamento. Em Valdujo, também deste concelho, espalharam as alfaias e os santos por várias casas. Mas em Dornelas, Aguiar da Beira, foi apedrejado o administrador do concelho e o candidato às Constituintes. Houve tiroteio, o carro das personalidades ficou em fanicos e uma mulher foi vítima de uma bala transviada.
Corajoso, coerente e fiel à Igreja, de nada temeu este bispo. Viu-se obrigado a comparecer no tribunal da Guarda, foi expulso, conheceu as amarguras do exílio, de onde continuou a divulgar as pastorais. Após ter passado por Tortozendo, onde o povo exigiu a sua expulsão, e pelo Fundão, acabou por ir residir para uma aldeia próxima da Régua, Poiares, a sua terra natal. O jornal “A Folha de Trancoso”, sempre ele, escreveu na circunstância – “oxalá que por lá se conserve por muitos anos e bons”. E dirigindo-se ao ministro e autor da lei, Afonso Costa, o mesmo jornal deixou impresso “que nunca as mãos lhe doam”.
Esta lei, necessária e, em grande parte, justificável, instituiu o registo civil obrigatório e a completa liberdade dos cultos. Pecou por excessos, designadamente nas pensões atribuídas aos párocos pelo governo civil, submetendo-os ao poder administrativo civil, mas a Igreja não tinha aderido convenientemente à queda da monarquia e considerava o regime como uma moléstia terrível para o corpo e para a alma.
Trouxe aqui este lapso de História regional, porque ao tempo a política local não era de paninhos quentes. Diziam o que pensavam, escreviam o que sentiam, requeriam o que achavam justo, reagiam às iniquidades, de um lado e do outro. Trata-se de uma crónica que recua 100 anos para falar de um bispo da Guarda sem medos, de uma terra sem receios e de um jornal “sem papas na língua”. Por isso, sempre vos digo que este título, retirado das páginas de um jornal já centenário, podia ser aplicado hoje, não à Igreja, mas a quem tão mal exerce o poder neste País.
Por: Santos Costa