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Mário Soares deixou-nos e deixou-nos tudo

Era um revolucionário burguês. Os burgueses criticaram-no por ser revolucionário e os revolucionários criticaram-no por ser burguês. Era por isso que ele é tão refrescantemente moderno: ainda não nos aproximámos do que ele queria para nós.

Mário Soares não levou nada com ele. Deixou tudo connosco. É essa a maior generosidade que uma pessoa pode ter: querer tudo para os outros e dedicar a vida a lutar por isso — e por nós.

Mário Soares não se importava que não gostassem dele. Ia em frente, achassem o que achassem. É essa a coragem maravilhosa que deixou: serviu de exemplo da liberdade mais importante de todas, que é a liberdade de sermos como somos e acreditarmos no que acreditamos.

Até ao fim da vida, Mário Soares exerceu essa liberdade da maneira mais desobediente, imprevisível e desconcertante. Falava alto quando queríamos que se calasse. Quanto mais queríamos que se calasse, mais alto falava.

Mário Soares foi um rebelde e um inconveniente. Era um grande erro tratá-lo com condescendência ou passar-lhe a mão pelo pêlo. Ele reagia com arrogância não só à arrogância como aos excessos de humildade. Não era nenhum santo, graças a Deus. E nunca nos deixava esquecer isso.

No final de cada batalha — a grande maioria das quais perdeu descaradamente —, Mário Soares parava para dar lugar aos vencedores, saudando-os de igual para igual, como se também tivessem perdido.

Pouco importava na estima dele. Mário Soares era uma pessoa profundamente civilizada e humana. Revia-se nas fraquezas que todos herdamos mas poucos reconhecem. Era mimado mas recusava-se a mimar. Respeitava os outros não porque os outros tinham alguma coisa de especial — mas porque não tinham. Eram seres humanos, cidadãos, compatriotas. E isso chega. Isso deveria sempre chegar se todos nós tivéssemos a ideia generosa de democracia que Mário Soares tinha, pôs em prática e deixou para que nos habituássemos a ela e fôssemos, por nossa vez, libertados por ela.

Mário Soares deixou a pessoa dele nas gerações de camaradas e opositores que ele, directa ou indirectamente, inspirou. Podemos não reconhecer essa dívida — tanto faz. A liberdade de cada um de nós não cai nem cresce por causa do mal ou do bem que pensamos dela. É essa a única liberdade valiosa: a que não depende da nossa aceitação; a que é independente da nossa vontade de exercê-la ou reprimi-la.

Pode-se dizer mal de Mário Soares, o mal que se quiser. Não há nada que ele não tivesse ouvido em vida — e verdadeiramente tolerado, não com sobranceira indiferença, mas com o respeito democrático que vem dar ao mesmo. Encolher os ombros faz parte da liberdade. Foi Mário Soares que nos ensinou isso, tanto quando ergueu o punho como quando encolheu os ombros.

Mário Soares era o político que era uma pessoa. Recusou-se sempre a ser um salvador ou uma figura acima da multidão. Ele era o político que era de um partido — o Partido Socialista — e com muita honra. Ele era um laico convicto, capaz de dar tudo pela liberdade religiosa de todos aqueles que têm religiões diferentes da grande maioria. Ele era um republicano honrado que sabia falar com monárquicos, que os monárquicos respeitavam por ter sempre consciência de que tudo depende sempre do que sente cada um de nós e que as nossas crenças, nunca sólidas ou imutáveis, são tão nossas como a nossa humanidade.

É essa semelhança no que nos distingue que nos dá razão para acreditar na humanidade e em ideais tão antigos e modernos como a liberdade, a fraternidade, a justiça e o progresso económico, social e político.

Mário Soares era um revolucionário burguês. Os burgueses criticaram-no por ser revolucionário e os revolucionários criticaram-no por ser burguês. Era por isso que ele é tão refrescantemente moderno: ainda não nos aproximámos do que ele queria para nós.

Ele deu-nos o desconto, compreendeu a nossa volubilidade e a nossa desconfiança. Compreendeu a nossa tendência ora messiânica, ora depressiva. Nunca se iludiu acerca de nós. Aceitou-nos como nós somos, recusando sempre os papéis providenciais que alguns de nós quiseramos impor-lhe, de pai ou de profeta.

Mário Soares foi sempre intransigentemente humano. Ou seja: transigiu em tudo. Negociou, esperou para ver, mudou de opinião. Foi um político inteligentíssimo que nunca teve paciência para se armar em superior. Sempre soubemos quem ele era e ao que vinha. Paradoxalmente, acabou por se prejudicar mais do que estava disposto a fazer. Foi pena não ter estado mais tempo no poder. Mas o preço disso — fingir ser quem não era, achar-se melhor do que nós — era caro de mais para ele. E ele fez bem em não pagá-lo, por muito jeito que tivesse dado a Portugal.

No dia em que morreu Mário Soares saúdo a liberdade que nos deixou, que está connosco agora, ao ponto de eu poder escrever estas linhas sem sentir o mais pequeno constrangimento ou ter de ceder à mais sensata obrigação.

Ele quis — deu a vida política por isso — que falássemos à vontade e que fôssemos tratados como cidadãos, com respeito pelas nossas opiniões e a força do Estado atrás do nosso direito de exprimi-las e lutar por elas.

Ganhávamos muito em aprender com ele — não tanto o que ele nos disse e ensinou, mas a maneira livre e vaidosa, civilizada, egoísta e profundamente humana como ele viveu.

Perdemos uma grande pessoa. Mas aquilo que nos deixou — que só temos de não desperdiçar — é muitíssimo maior. E essa é a grandeza que Mário Soares teve: deixar-nos tudo. Nunca mais haverá um Mário Soares. Mas nunca ninguém nos deixou uma grandeza maior.

Por: Miguel Esteves Cardoso

Crónica publicada no jornal “Público”

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