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Literatura…

O nome maior de toda a História portuguesa no Oriente – e um dos nomes maiores de todo o século XVI a nível mundial –, Afonso de Albuquerque, quando avistava uma embarcação inimiga trucidava de tal modo os seus ocupantes que, no fim, dizia aos raros sobreviventes: “Com os restos fazei caril”. No meu tempo de Liceu – é Albuquerque o patrono do nosso –, através d’ Os Lusíadas, ensinava-se aos alunos, por Camões, que Albuquerque era “terribil”.

Todavia, quando, a 16-XII-1515, expirou à vista de Goa, o povo saiu aos gritos a lamentar a morte do seu conquistador; e a presença portuguesa na Índia, de tão intensa (Albuquerque era um visionário que queria criar uma miscigenada raça luso-indiana), tornou-se perene. Tanto que o próprio Nehru, antes de morrer, confidenciou a alguém que, sabia, de seguida, ir encontrar-se com Salazar: “Reconheço hoje que queimei as minhas mãos em Goa. Foi para mim um desastre político. Pode dizer isto ao Dr. Salazar”. Por parte da União Indiana, a rapina do Estado da Índia a Portugal foi uma infâmia além de todas as palavras. Perene, disse. Um diário de hoje (15-I) publicita cursos a realizar pela Fundação Oriente, dos quais um, coordenado por Paulo Varela Gomes, é sobre “Arquitectura e Arte indo-portuguesa”.

Que, a despeito de todos os seus pontos negros – e a chamar a atenção para um deles é que se inicia este texto –, não só a colonização portuguesa foi ímpar (os mais ínsignes historiadores falam dela como um “enigma”), como, reconhecem os mesmos historiadores, o Império português foi o primeiro a constituir-se e o último a desaparecer. Todo o humano é lodo e estrelas.

“Nunca achei a pobreza edificante; só me ensinou uma distorção de valores”, disse Charlie Chaplin. Com efeito, a estreiteza de horizontes dos materialmente pobres é aterradora. Fixe-o, por favor, estimado leitor. A pobreza material é uma maldição, porque é sinónimo de pérfida ignorância, de total incapacidade para se ser interventor, possuir um espírito elevado.

Isto significa catastróficas consequências se se permite emitir opinião, conferir valor de opinião, a quem não tem altura para tê-la; e não há altura para tê-la, também, porque ninguém é uma ilha, ou seja, somos, isso sim, elos na cadeia do tempo (o que está demonstrado acima). Assim, um depoimento sobre o social não é, ipso facto, uma idoneidade. A realidade é mais que literatura – ou depoimentos, às vezes sabe-se lá de quem.

Para se chegar à verdade é mister uma inserção na diacronia, na sequência do tempo, uma elevação, pela alteridade, ao alcandor do espírito humano; e espírito humano, isto é, dos homens, dá-nos concreções sublimes e diabólicas. Repete-se.

Sucede é que o Futuro só pode fazer-se com o sublime; e o sublime postula o perdão . Mais. “O bem deve estadear-se e ensinar-se; e o mal deve ocultar-se”, disse um clássico grego.

Ora, o perdão é a antítese do ressentimento, algo como irradiar amor e boa vontade a todos os seres do mundo; e, quando digo “a todos os seres do mundo”, significo humanos, animais, vegetais, em suma, cósmicos, que é o que todos somos. Isto postula uma Vida a subir na educação do espírito e no espírito da educação, nada, portanto, tendo que ver com o negativo. Melhor: superando, neutralizando, anulando o negativo.

De cada vez que Günter Grass escrevia um livro deixava os alemães irritados. Com razão. Avivar o horrendo?! Em 2007 ou 2008 comprei Der Spiegel numa área de serviço algures entre Estugarda e Munique. A capa chamava a atenção para o facto de, afinal, o Prémio Nobel da Literatura ter integrado as forças nazis… Um escândalo, portanto.

Contudo, o que me levou a estas letras foi que o suplemento literário do Público de ontem, Dia de Consoada, continha várias páginas acerca de uma “autobiografia mnemónica” sobre o racismo em Moçambique. A autora é uma braquicéfala pícnica chamada Isabela de Figueiredo. “É um ajuste de contas com o pai morto”, disse; e ainda: “os massacres que se seguiram à independência eram «a justa retribuição»”; e ainda mais: “as pretas tinham a c[…] larga e essa era a explicação para parirem como pariam, de borco, todas viradas para o chão (…). A c[…] das brancas não, era estreita (…) porque à c[…] sagrada das brancas só lá tinha chegado o do marido”.

Era a data mais adequada para falar de tal livro? E, afinal, o espírito não se esgrime pela linguagem? Uma linguagem negativa é um veículo de repugnância, donde, automaticamente, o imperativo de pôr de lado tal narração. E não só por isso. Afirmar as próprias culpas? Um ajuste de contas? Mas, se as culpas são pensamentos negativos, o que cada um tem de fazer é proteger-se desses pensamentos. Ao postular uma perfeita atenção a toda a nossa vida interior (e força, se necessário), os que ainda aqui não chegaram, alcançaram, podem escrever o que quiserem. Era, todavia, melhor que não o fizessem, pois, ao fazê-lo, estão a dar continuidade à sua pequenez e/ou à sua miséria.

Infelizmente é o mundo de muito do jornalismo que nos aparece. Atentos, perspicazes e sempre aptos a protegermo-nos a nós próprios e mostrar aos outros o caminho – isso sim – não narrações destas. Meter a mão no lodo e falar do lodo, não. A deletéria treta do Realismo já lá vai. Falem antes das estrelas.

O delicioso Heraclito disse-o de outro modo: “Homero merece ser expulso dos concursos, e ser açoitado, bem como Arquíloco”.

Guarda, Dia de Natal e 15-I-10

Por: J. A. Alves Ambrósio

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