Arquivo

Liberdade Encarcerada

Opinião – Ovo de Colombo

Que rostos são estes? São rostos de cadastrados, presos políticos da ditadura fascista em Portugal. A realizadora Susana de Sousa Dias descobriu-os nos arquivos da PIDE/DGS, hoje no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Falou depois com as mulheres e os homens fotografados. São as vozes delas e deles que ouvimos a descrever as suas detenções em casa, no trabalho, na clandestinidade, as suas vidas interrompidas, e as agressões, humilhações, e torturas que lhes foram infligidas na prisão. O filme tem como título o número de anos que vão de 1926 a 1974: 48. É uma forma directa e concisa de dizer ao que vem: participar na batalha da memória que se tem desenrolado desde a Revolução de Abril, contrariando o branqueamento da repressão fascista.

O dispositivo é, em simultâneo, simples e subtil. As fotografias vão sendo mostradas, nalguns momentos com lentíssimos movimentos de câmara sobre elas, noutros com fundidos-encadeados entre as imagens de duas delas. O olhar plana, perscrutando, salientando as diferenças entre tempos, nos casos em que as pessoas foram presas mais do que uma vez. O desenho de som, da responsabilidade do compositor António de Sousa Dias, cria uma densa textura sonora. Os testemunhos surgem no meio da respiração, do contacto da pele e dos pêlos, dos lábios que se descolam, dos ruídos do ambiente. Se 48 (2009) consegue libertar verdadeiramente estes discursos de quem foi perseguido, silenciado, e agredido é também porque lhes dá uma ressonância genuinamente humana.

Estes são rostos que mostram as ventas do fascismo. O documentário prolonga o trabalho da cineasta com imagens em movimento da ditadura em Natureza Morta (2005) e demonstra que um arquivo é uma coisa morta sem a memória histórica que lembre a vida que gerou os seus documentos. Ao indagar as histórias que estas fotografias de cadastro evocam, o filme faz um retrato colectivo, entretecido de diferentes episódios pessoais, da luta unida e resistente pela democracia. No primeiro de três poemas de homenagem a Álvaro Cunhal, Manuel Gusmão descreve-o como “o homem livre encarcerado”. Podemos dizer o mesmo destes 16 antifascistas, na sua maioria membros do Partido Comunista Português. Traziam a liberdade consigo, prenunciando-a, e para isso viveram como clandestinos e por isso foram feitos prisioneiros. A última imagem já não é de um preso, mas de uma noite carregada, com árvores de muitos ramos que a luz instável vai desvendando. Se é verdade que a liberdade havia de triunfar em Abril, ouvindo-os atentamente compreendemos que a liberdade deles ainda não é a nossa. Falando do passado, é sempre do futuro que eles falam.

Por: Sérgio Dias Branco*

* Coordenador de Estudos Fílmicos e da Imagem (Mestrado em Estudos Artísticos) na Universidade de Coimbra

**O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Próxima semana: Ana Teresa Peixinho

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