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Ler tudo e mais alguma coisa

Tresler

“O direito de não ler. O direito de saltar páginas. O direito de não acabar um livro.”

(Direitos do Leitor enunciados por Daniel Pennac em Como um Romance)

1.A cada passo ouvimos pessoas a acusar os jovens de não lerem e não gostarem de ler. Para além do estranho de se acusar alguém de um gosto que não se tem (substituído por outros), a acusação, a ser verdade, culparia também os adultos, o mundo atual e o sistema de ensino, que não proporcionaram condições a esses jovens para que eles vissem essa leitura como benéfica e desejável. Fala-se quase sempre da falta de gosto e de prática de leitura das narrativas literárias, o que por si só não pode significar lançar o anátema generalizado sobre as leituras juvenis. Os jovens leem, ou melhor, vão lendo, seguindo os interesses, recusando as obrigações, chegando às narrativas de outra maneira.

Quando se fala da falta de leitura ou da batota que os jovens fazem na escola ao “escaparem” às leituras difíceis ou ao lerem resumos em vez das obras completas, quase sempre se esquece que a maior parte dos adultos que são acusadores quase não voltaram a ler livros depois da escola nem viram a sua literacia testada com novas experiências literárias. As suas experiências de leitura (mesmo de diplomados) limitaram-se a partir da saída da escola à eventual releitura dos clássicos ou à episódica leitura de periódicos (leitura descontínua de uma soma de pequenos textos, muitas vezes de simples imagens e títulos, quase sempre das publicações mais ligeiras e fúteis).

2.Convirá dizer que a procura das narrativas na nossa vida é uma procura ligada à própria natureza humana, que anseia por histórias que sejam exemplares ou que pelo menos possamos confrontar com as opções e percursos pessoais. Bruner e outros psicólogos e cientistas sociais estudaram esta tendência humana como a “moeda comum” entre o indivíduo e o mundo social, reflexo de sistemas de valores que são compartilhados por quem conta e por quem lê (ou ouve) e ainda pela sociedade que está em fundo. Histórias necessárias para todos crescermos, desde que o homem é homem. Na geração a que pertenço (gente com mais de 50 anos) o suporte em livro para acedermos às histórias era o meio ideal para esse contacto enquanto jovens. Na nossa juventude também “escapávamos” aos livros volumosos ou maçudos com os livros aos quadradinhos, num misto de alfabetização visual e clandestinidade saborosa. Quantas vezes os padres no Seminário me iam retirar da carteira na hora de estudo os livros do Texas Jack e de outros heróis! Esquecemos entretanto que hoje a juventude acede todos os dias a histórias pelos meios audiovisuais e multimédia, que as narrativas estão multiplicadas em formas mais acessíveis (mais fáceis e mais atraentes) e que o que é mais fácil é mais procurado. Esquecemos que o mesmo se passa nos adultos, que esquecem os livros, preferindo os filmes ou as telenovelas, sendo portanto a tendência transversal a todas as idades.

3.Falta dizer que, sendo a literacia uma capacidade fundamental para a educação humana e a ferramenta mais adequada ao conhecimento, é necessário que a sociedade continue a achar importante investir nessa capacidade, pedindo à escola que cultive diversos tipos de leitura com diferentes formatos textuais, de forma a desenvolver cidadãos capazes de entender e comunicar. Dado o progresso e a multiplicação de géneros e formatos no mundo atual, a educação para a leitura tem de ser mais diversificada para formar para mais funções e para mais situações. Mas sempre em diálogo com a atualidade e com os novos produtos narrativos, sem os quais os jovens não conseguem viver (e que substituem em parte a necessidade do livro). Com a mesma idade os jovens atuais já chegaram a muito mais histórias do que eu cheguei há 30 ou 40 anos. Só não chegaram aí por via do livro. O mesmo se passa relativamente ao texto lírico, de carácter expressivo e criativo (e salvaguardando a diferença entre letras de canções e poemas): os jovens acedem através da música a n vezes as mensagens líricas a que eu acedia há 40 anos.

4.Por isso, entre o utilitário e o artístico, numa perspetiva gradualista e multipolar há um leque de escolhas que podem elevar a literacia, do diário à ficção científica, do policial à biografia, das memórias ao romance sentimental, do ensaio à poesia. É preferível ler o mais simples e ir evoluindo do que fazer batota fingindo ler o que não se leu.

Por: Joaquim Igreja

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