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Ler o livro, ler o autor

Tresler

“Não posso evitar pensar nas coisas.”

(José Saramago in Uma longa viagem com José Saramago, de João Céu e Silva)

1.Os livros existem por si próprios ou por aquilo que os rodeia e gira à sua volta? Eles são só aquela massa impressa ou transformam-se pela presença próxima do autor? Vale a pena conhecer melhor o escritor ou a sua biografia vai distorcer e banalizar (e esquecer) o próprio livro?

A discussão vem desde o começo dos estudos literários e separou as águas ao longo do século passado. Ao longo dos meus estudos superiores, a corrente biografista estava em crise, mas passados trinta anos as coisas não se passam da mesma maneira.

Sendo a resposta pelo menos bipolar, refira-se que a atualidade, com a imensa massa de informação produzida e a sua rápida propagação, torna hoje o autor num parceiro inseparável do seu livro. E se a presença e a proximidade do autor podem funcionar como um tónico e uma técnica de marketing, a mediatização da cultura vem tornar incontornável a “marca” do escritor frente à obra que desvenda ou encobre. A figura do autor (e por vezes as suas orientações de leitura explícitas) comporta-se como uma segunda obra que se afirma diante da obra em papel, com uma função ou um efeito interpretativo eventualmente inibidor da leitura livre do leitor.

2.Vem isto a propósito do filme “José e Pilar”, recentemente projetado na Guarda (e também na TV) e que gira à volta dos últimos anos da vida de José Saramago e de Pilar del Rio. Trata-se de um interessante documentário de duas horas mas delineado à maneira de uma narrativa, em que os heróis são os dois elementos do casal. Autorizar alguém a passar alguns meses portas adentro da nossa intimidade e construir uma longa metragem à volta da nossa vida não é para qualquer um mas encaixa bem na trajetória de Saramago, nomeadamente após a atribuição do Nobel. O que sobressai do filme, para além de um inocente narcisismo natural a um filme biográfico, é a ânsia enorme de Saramago de se mostrar fisicamente ao mundo, multiplicando-se em apresentações de livros, conferências, sessões de autógrafos, inauguração de exposições, cerimónias públicas de homenagem, etc. O filme em certos momentos cai no anedótico (as filas de 400 pessoas para autógrafos, o popular que quer ser fotografado com Saramago ou que lhe pede para desenhar um hipopótamo no livro, etc.), mas recompõe-se rapidamente no sentido da mensagem para a posteridade, com as célebres boutades de Saramago ao nível da consciencialização dos cidadãos e dos povos para a política e ao nível da sua relação com Deus e a religião. Afirmações desassombradas como as que já lhe conhecíamos.

Terá algum mal este legado para a posteridade, este “querer ser visto assim”? Nenhum, se as pessoas forem tanto leitores dos livros como do que se diz sobre eles. Adiantará alguma coisa ao leitor verdadeiro do livro? Também não atrasa, se o leitor for verdadeiramente leitor, isto é se ele fizer a “sua” leitura. Apesar de a interpretação do autor ser condicionante, não podemos viver hoje sem a dimensão mediática dos escritores. Porque eles existem.

3.Se Saramago é claramente o mais conhecido escritor português, afirmemos então uma evidência: ele é mais conhecido que as suas obras. Foram tantos os anticorpos que a sua escrita inovadora, por um lado, e as suas ideias iconoclastas ou de extrema-esquerda, por outro, criaram que o intenso marketing das suas obras não foi suficiente para convencer ou motivar contra os preconceitos. E considero que é mesmo de preconceitos (e/ou de preguiça) que se trata. Às vezes penso mesmo que é medo de ser envolvido por alguém de quem se criaram estereótipos que custam a descolar. Numa obra tão valiosa, não conseguir descobrir a mensagem, a arte e o engenho é qualquer coisa de inaceitável. Quando ouço professores a questionar a utilidade de o “Memorial do Convento” estar no programa do 12º ano, por os alunos não aceitarem o “fardo” de ler uma obra destas e recorrerem mais que nunca a resumos e auxiliares que substituem a leitura, só posso lamentar esta posição dos alunos e o desânimo dos professores. Mas o mesmo não se passa também com outras obras? Na verdade, também “Os Maias” são fintados e ludibriados a cada passo. É esse grande desafio que se pede aos professores: fazer gostar mesmo de obras que não foram produzidas para o público juvenil mas que alguém legitimamente em seu lugar considerou que poderiam ser marcantes na sua vida ou na sua condição de portugueses. Que tal começar por algumas partes deste filme?

(Para o público em geral, além do “Memorial do Convento” caem mesmo bem nas férias o “Ensaio sobre a Cegueira” ou o “Evangelho segundo Jesus Cristo”. Para quem quer ir mais além, “Uma longa viagem com José Saramago” ajuda a situar até onde o próprio autor e os seus próximos podem situar. Vai um Saramago entre dois banhos de mar? Quem tem medo?).

Por: Joaquim Igreja

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