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Leitura e espetáculo

Opinião – Ovo de Colombo

Habituámo-nos a ler as suas fascinantes narrativas de ficção, histórias envolventes, originais, das quais destaco “Pantaleão e as visitadoras” (1973) e “O Sonho do Celta” (2010), ano em que foi galardoado com o maior prémio literário internacional: o Nobel. Fazedor de estórias que nos deixam a refletir e nos ensinam a olhar o mundo de outros ângulos, Mário Vargas Llosa, escritor peruano, afirmou um dia que a escrita serve sempre para «preencher vazios, para fazer separações contra a realidade, contra as circunstâncias». Ora, eu ouso acrescentar a este aforisma que a escrita só cumprirá esses objetivos se, do outro lado, estiver o leitor que, através da sua autonomia, do seu pensamento, exercendo o seu papel interpretativo, complete esses sentidos semeados pelo escritor.

De entre tantos títulos do multifacetado escritor peruano – romancista, ensaísta, político e jornalista – estranho parecerá aos leitores sugerir-vos hoje “A Civilização do Espetáculo”, última obra publicada em 2012 pela Quetzal, que reúne um conjunto de artigos de opinião publicados na imprensa espanhola nos últimos anos. Contudo, qualquer seleção é forçosamente parcial e parcelar e pareceu-me extremamente útil invocar, num texto que inaugura a minha colaboração nesta secção, o olhar que Vargas Llosa lança sobre a atualidade, nomeadamente sobre a cultura e a sociedade do nosso tempo.

Não se trata de ficção. Não é literatura. É, contudo, um título marcante para se entenderem as últimas décadas da nossa História ocidental, através de um olhar pessimista mas muito lúcido de um homem que sempre se comprometeu com o seu tempo e que nunca conseguiu conceber a literatura como algo que dele pudesse alienar-se. Num estilo contundente e claro, através de uma argumentação eficiente e bem fundamentada, o cronista/ensaísta pinta o cenário desolador de uma civilização que vive essencialmente do parecer, da imagem, do “fait divers” e do espetáculo; um cenário em que a cultura, décadas atrás baluarte de defesa do ser e do caminho social, deixou de cumprir os seus objetivos matriciais e passou a ser entendida como um show, cujo predicado essencial é a distração inconsequente. A superficialidade e a frivolidade da sociedade contemporânea, dominada pela lógica capitalista e neoliberal, e alimentada por um ecossistema mediático pouco crítico e igualmente superficial, projetam-se na arte, na literatura, no jornalismo e contaminam os sectores sociais que dantes tinham responsabilidades acrescidas neste domínio: escritores, artistas, intelectuais.

Assim, num espaço dedicado a livros, letras e leitura, sugiro ao leitor que comece precisamente por esta obra de Vargas Llosa para que possa ser vigilante nas escolhas que faz. A civilização do espetáculo só se perpetuará se houver quem a alimente.

Ana Teresa Peixinho*

*Professora da Universidade de Coimbra. Inicia nesta edição uma colaboração regular com O INTERIOR

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