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Lei eleitoral e interioridade

Theatrum mundi

Ao que parece, PS e PSD já chegaram a acordo para a aprovação de uma nova lei eleitoral. A diminuição do número de deputados à Assembleia da República e os círculos uninominais ficam pelo caminho; surge a figura do círculo nacional e a divisão dos círculos mais populosos em círculos autónomos. Pela primeira vez, alguns distritos desaparecem como unidades de eleição e representação política, é o caso de Lisboa, Porto, Setúbal, Braga e Aveiro. Na prática, a lei cria novas entidades de representação política, novos distritos eleitorais, através da agregação de um número reduzido de concelhos populosos. Por exemplo, onde existia um único distrito de Lisboa, passam a existir pelo menos 4: o distrito de Lisboa-cidade, o distrito de Cascais-Sintra, o distrito de Loures-Amadora-Odivelas e o de Lisboa-Norte. Para fins legislativos, o distrito de Braga é dividido em 2, Norte e Sul e, na prática, é como se Guimarães finalmente conseguisse a emancipação política e alcançasse a dignidade de capital. Dito isto, e ainda que não diminua o número total de deputados à Assembleia da República, desconfio que a lei aproveite para os redistribuir pelos diferentes círculos, os antigos e os novos, de acordo com o mui democrático e inevitável critério demográfico. Tudo junto, podemos esperar da nova lei eleitoral representação reforçada para o litoral e representação diminuída para o interior. Formalmente, e como cada cidadão maior de 18 anos tem direito a um voto, tudo fica na mesma; acontece é que cada vez maior número de cidadãos maiores (e menores) de 18 anos vive no litoral e, de qualquer forma, a lei eleitoral da democracia sempre reflectiu esse factor. Na prática, e enquanto entidades colectivas que agregam cidadãos que vivem num espaço com as suas especificidades, os distritos do interior vão contar ainda menos nos cálculos eleitorais.

Na prática, os círculos uninominais há muito que estão próximos da realidade eleitoral nos distritos do interior. Se, na vigência dos círculos uninominais puros, o candidato do partido mais votado é o único representante do seu círculo no Parlamento nacional, o distrito de Portalegre, que elege 3 deputados à Assembleia da República, é um círculo quase uninominal, rapidamente a caminho de se tornar uninominal. O exemplo de Portalegre ajuda a perceber os dramas da representação política em todo o interior, de Beja a Bragança, passando pela Guarda. Para quem os defende, a justificação dos círculos uninominais é a de que permitem uma maior proximidade entre eleitos e eleitores e a consequente maior responsabilização do único eleito por cada círculo daquilo que, em terras britânicas, se chama de constituintes, isto é, os representados. Ora, a prática do sistema eleitoral/parlamentar português tem mostrado que, embora eleitos por círculos regionais, os deputados não são representantes na Assembleia da República das suas regiões. Essa foi a vontade do legislador e essa é a interpretação corrente produzida e reproduzida pelo próprio sistema político. Veja-se, por exemplo, a indignação causada durante a aprovação do chamado orçamento limiano, quando o deputado do CDS por Viana negociou, com António Guterres, o seu voto favorável e exigiu contrapartidas para o seu distrito. Já causam menor indignação, mas sempre a mesma desconfiança, as recorrentes ameças dos deputados madeirenses assentes no mesmo tipo de argumento. Quando a indignação sobe de tom, o sistema político reitera que os deputados só representam a nação. Assim, e no contexto do actual sistema político, é difícil tornar os deputados em verdadeiros representantes de constituintes organizados que, além do mais, prestam a estes contas da sua função, como acontece no Reino Unido. Com ou sem círculos uninominais. No sistema político em vigor, a principal e quase única função dos deputados à Assembleia da República é a de constituírem maiorias governativas e oposições fiéis aos chefes de fila. Tudo o resto é colecção de selos.

Por: Marcos Farias Ferreira

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