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Karajan

Cada compositor foi-lhe o Orfeu de que ele precisava, todos os dias, para experimentar o poder da música em si e nos outros. Das artes, esta é aquela que, no corpo, mais se continua. Herbert von Karajan sabia isso: fez do seu corpo uma imagem de soberania da música sobre o mundo. Agora que o centenário do seu nascimento passou, multiplicaram-se os artigos a falar dele e do seu legado. Para surpresa de muitos, disse-se algum bem e muito mal, como se a sua morte tivesse libertado o mundo da música de uma presença que pesava, trocando-a por uma liberdade que se fez crítica.

Nos artigos que o evocaram, a palavra que mais apareceu não foi música, mas poder. Insistiu-se no seu desejo de dominar o mundo, no despotismo sobre as orquestras, na obsessão de controlo da imagem, no uso da tecnologia para perpetuar a glória. Falou-se também do seu narcisismo: o amor da fama, o gosto do dinheiro, a inclinação para o luxo, o pendor para o exibicionismo. O seu pacto com o demónio nazi foi lembrado para explicar a permanente vontade de poder: esse tempo tê-lo-ia viciado numa atitude autoritária, implacável, fria e eficaz.

A herança musical de Karajan é imensa: 900 gravações, 120 milhões de discos vendidos, a descoberta de músicos e cantores como Janowitz, Behrens, Mutter, Tomowa-Sintow, Baltsa. E disso que ficou, além disso? Ficou uma imagem de Titã, interpretações magistrais e uma incansável controvérsia. Não admira: a música está cheia de tumultos e de duelos. Os intervalos nos teatros de ópera e nas salas de concertos são arenas verbais. Sei de quem se zangou para sempre com o melhor amigo por causa de uma disputa gerada pelos agudos de uma soprano. Uns fazem de Karajan um ídolo; outros, um alvo. Perante ele, não há indiferença ou distância: há ardor. No agora do centenário, li o louvor e o anátema. Um crítico francês fez o inventário dos ataques. “Disse-se que era um maestro frio, preocupado unicamente com a beleza sonora e a sumptuosidade. Pretendeu-se que não tinha estilo; dirigia Bach como Brahms e Wagner como Beethoven.” Um crítico britânico foi feroz: “O seu legado é regressivo e o centenário é o momento para deixar cair de vez o pano sobre uma vida pouco meritória que não produziu nenhuma ideia original nem nenhum valor humano que merecesse a pena. Karajan está morto. A música está muito melhor sem ele.” Um crítico espanhol conciliou: “Criou um estilo, um som, mas é certo que este começou com um brilho e uma energia que arrebatavam, mas, pouco a pouco, foi-se acomodando numa standardização.” Outros exaltaram-no: “Foi o maestro do século XX, um génio da interpretação, e as suas versões são quase sempre insuperáveis, as melhores das obras que procuramos.” A cada um o seu Karajan!

Fascinado quando, muito novo, comecei a ouvi-lo, sei hoje que as suas interpretações pressupõem uma ideia da música que não é tão absoluta, objectiva e indiscutível como ele gostaria que fosse. Mas continuo a escutá-las e a achar em muitas delas alguma coisa parecida com a perfeição. Aquele a quem chamavam Deus morreu em 1989 e, a julgar pelo que agora se disse dele, não encontrou neste centenário o terceiro dia para ressuscitar.

Por: José Manuel dos Santos

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