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Kafka de cama

Bilhete Postal

A mulher sorridente chama-se Olinda e vende laranjas. Trinta anos passados, a mesma Olinda sofre a metamorfose da idade e está perdida no corredor da unidade de paliativos. A face está disforme do tumor e por isso não fala. Come com uma palha. Pensa-se que está demente porque vagueia errática se a porta lhe permite a fuga. Como Gregor, que se tornou um escaravelho no conto de Kafka, esta Olinda persiste na existência que é metamorfose da outra, aquela que tinha cheiro de laranja, som de fado e encanto de sorrisos. Onde existiu a elaboração, o detalhe e o requinte agora há rugosas deformidades oncológicas, comportamentos disformes, ausência de afetos e discurso. Olinda é um estorvo que custa uma fortuna. Olinda é algo que surge da outra que amavam todos. “Será que nos entende?” – indagam alguns. Quando Gregor se transforma descobrem-se os enganos múltiplos, percebe-se como se derrete o amor, se decompõe o afeto. É o amor ou a vergonha que nos sustem? É o amor ou a compaixão que nos impele a gastar uma fortuna com a Olinda agora? Que resta da outra desejada, amada, idolatrada neste corpo metaformizado e nesta mente inacessível? A mãe demenciada num lar, visitada aqui e ali. O pai institucionalizado a chegar ao fim. Transforma-se mais o eu que ama e se repugna agora, ou dói-lhe tanto que se fecha a ostra para sobreviver? A forma como os que vivem esta transformação a encaram é uma via sacra que muitos não conseguem. Chicote, cruz, cansaço, melancolia, desesperança, mistura-se tudo num cálice de dor. A metamorfose da velhice é um lugar onde a brutalidade envolve desconforto, vergonha, revolta, e, claro, questões financeiras. Kafka fala da metamorfose que isola e condena. Olinda é a metamorfose do cidadão que se degrada e como um inseto Gregor ocupa os nossos dias na totalidade. Estamos preparados? Temos recursos e humanidade para a metamorfose do outro e nossa?

Por: Diogo Cabrita

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