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Juízas e Administradores de Insolvência

Na primeira página do Diário de Notícias de segunda-feira vinha como principal destaque o seguinte título: “Três juízas acusadas de forçarem insolvência de famílias”. Logo de seguida, em subtítulo, esclarece-se que “Queixas visam magistradas por terem decidido contra pessoas com dívidas, beneficiando os administradores de insolvência”. Prossegue a notícia com a afirmação de que essas juízas são acusadas (por uma organização ligada à Confederação Nacional das Associações de Famílias) de empurrar “sistematicamente famílias para a insolvência”. No desenvolvimento da notícia contam-se três casos, um por cada juíza, em que terá sido decretada a insolvência e esta seguido os seus trâmites apesar de haver recursos ou acordo com os credores. Isto beneficiaria os administradores de insolvência que, entretanto, e beneficiando das decisões das magistradas, puderam continuar com a apreensão dos bens e com a liquidação dos patrimónios.

É mais o que a notícia esconde do que aquilo que mostra e, se mostra alguma coisa, é mais uma vez que os nossos jornalistas gostam muito de escrever sobre aquilo que ignoram, independentemente da verdade e dos efeitos sobre a vida e a honra das pessoas. Há factos que faltam na notícia e que ajudariam decisivamente a esclarecer a verdade do caso. Por exemplo: se havia acordo com os credores, e as famílias estavam a pagar as dívidas, porque não foi apresentado e aprovado, por esses mesmos credores, um plano de recuperação? Ou então, se a dívida estava a ser paga e havia acordo, porque pura e simplesmente não desistiram os credores da insolvência? Ou ainda, em cada um dos casos, e seria certamente relevante para um melhor esclarecimento, quem desencadeou o processo de insolvência?

Claro que o essencial da notícia tem explicações muito simples, que ela lamentavelmente omite mas são fáceis de deduzir nas entrelinhas. Pode por exemplo ter chegado ao processo um acordo com os credores já depois de ser proferida sentença (caso em que o poder jurisdicional do juiz se esgota, o que significa que não pode, salvo em casos excepcionais, alterar a decisão), ou então ter havido acordo com parte dos credores e não com o quorum necessário a aprovar um plano de recuperação. Pode ainda ter sido aprovado um plano de pagamentos ilegal (o juiz tem de recusar, por exemplo, um plano de pagamentos que implique perdão de dívidas fiscais – mesmo que aprovado maioritariamente pelos outros credores), ou este ter sido aprovado pelos credores fora de prazo.

Mais preocupante é a notícia partir de premissas que não confirma (uma prática supostamente reiterada de cada uma das juízas que depois, afinal, se traduz em apenas um caso por cada uma delas), basear-se em erros técnicos graves (os recursos, em processo de insolvência, não têm efeito suspensivo do processo e, por isso, embora suspendendo a liquidação não evitam a apreensão de bens) e depois partir para sugestões de corrupção ou conluio entre magistradas e administradores de insolvência, transformando estes, pelo caminho, em inimigo público número um das famílias. Preocupante é também a generalização a partir de um único caso por juíza, transformado em prática generalizada de cada uma delas, habilidosamente interligado com dados nacionais que apontam para 2439 casos de insolvência de pessoas singulares em 2013, tão habilidosamente que numa leitura em diagonal quase parecem esses casos provirem das mesmas magistradas.

Teria sido boa ideia, antes de publicar uma notícia destas, pedir uma opinião a um jurista. Este, claro, só a daria depois de consultar os processos (as famílias em causa certamente os forneceriam) e verificar cuidadosamente os factos. É assim que pelo mundo fora se faz jornalismo responsável e de referência.

Por: António Ferreira

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