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Itália: uma democracia anómala?

Razão e Região

As recentes peripécias políticas por que passou o governo de Romano Prodi vieram confirmar, mais uma vez, a «originalidade» da democracia italiana. Caiu devido ao voto de dois senadores da extrema esquerda e ressuscitou pela mão do Presidente Giorgio Napolitano e de uma ténue e tangencial recomposição da maioria senatorial. No fundo, a situação do Senado é a que melhor traduz a fragilidade da vitória da esquerda nas últimas eleições legislativas italianas e a heteróclita composição do bloco político do centro-esquerda. Alguma disfunção profunda afecta a democracia italiana…

Na verdade, já antes do terramoto de «tangentopoli», no início dos anos noventa do século passado, a democracia italiana era a única democracia ocidental que não conhecia uma verdadeira alternância. O governo era sempre de direita ou, então, a chefia do Governo era cedida, por razões instrumentais, a outros partidos menos representativos – o que se verificou, em quase meio século de governos, apenas duas vezes, com o republicano Spadolini e o socialista Craxi -, mantendo sempre a Democracia Cristã um controlo determinante sobre o governo e o parlamento, ou seja, sobre o sistema. A verdadeira oposição alternativa era constituída pelo PCI. Mas não lhe era reconhecido, pelo sistema, um verdadeiro estatuto de partido alternativo de governo, apesar da sua consistência eleitoral, superior em muito à de qualquer partido actual. Tratava-se da famosa «conventio ad excludendum»: este partido mantinha todos os direitos de cidadania política menos o de governar, no plano nacional. Ou seja: verificava-se uma espécie de «bipartidarismo imperfeito». Uma espécie de alternância bloqueada. Existiam, de facto, dois grandes partidos alternativos – à direita e à esquerda -, verificando-se, em abstracto, as condições para uma verdadeira alternância. Só que esta alternância bloqueava-se quando se punha a questão governativa. O que, de facto, aconteceu foi a substituição pragmática de uma eventual alternância por um regime de tipo «consociativo», um governo da sociedade de tipo orgânico, onde à oposição eram reconhecidos muitos direitos de exercício do poder, desde que fora da estrita esfera governativa. Por exemplo, as instâncias onde a oposição exercia mais poder eram as do poder local e o próprio parlamento. Mas também no serviço público de televisão, onde se verificava uma repartição «consociativa» do poder verdadeiramente milimétrica (de acordo com o famoso manual Cencelli), a famosa «lotizzazione»: RAI1, para a DC; RAI2, para o PSI; e RAI3, para o PCI. Viveu-se em Itália assim durante décadas. Depois veio uma época marcada sobretudo pela emergência do fenómeno Berlusconi, com todas as profundas mutações que o sistema de partidos, a política e a democracia sofreram. Irrupção de um protagonismo dos media jamais visto, ao ponto de um dos protagonistas políticos deter o quase monopólio da TV privada, invertendo a situação anterior, e fragmentação integral do sistema partidário. Também aqui a democracia italiana surge como única no panorama das democracias ocidentais. E uma das suas principais características é de natureza negativa: não possui dois grandes partidos alternativos que possam estabilizar as soluções governativas, num quadro de alternância. Trata-se, com efeito, de um sistema composto por «partitini», onde o maior deles possui cerca de 23% do eleitorado e o segundo maior cerca de 17%. E de um sistema onde o líder do maior partido detém o quase monopólio da televisão privada, com cerca de metade da audiência e com cerca de dois terços do volume publicitário televisivo.

O que está a acontecer em Itália tem de ser visto a esta luz: uma espécie de deformação congénita da democracia italiana. Nem de outro modo seriam explicáveis os inúmeros e insólitos episódios intragovernativos a que se vem regularmente assistindo e de que a demissão (após cerca de 9 meses de governo) e re-indigitação de Romano Prodi é apenas o último.

Na verdade, ao «bipartidarismo imperfeito», que bloqueou a democracia italiana durante décadas, seguiu-se um «minipartidarismo perfeito» que, à sua maneira, tem vindo também a distorcer o funcionamento da democracia. A meu ver, só a existência de dois grandes partidos alternativos com vocação de poder, com sólidas maiorias e sólidas lideranças, poderá superar essa disfunção congénita desta democracia. Só restaurando um bipartidarismo político que já não viva sob o espartilho de nenhuma «conventio» e superando o actual bipolarismo televisivo, que condiciona fortemente o funcionamento da alternância política, será possível à democracia italiana entrar verdadeiramente na sua fase adulta.

Por: João de Almeida Santos

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