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(Ir)realidade do território

A arte contemporânea tem-se interessado muito pela problemática do território. Desde os anos 60 que os artistas vêm alertando para os efeitos da suburbanização massiva, da poluição, da descaracterização do património e da decadência estética dos sítios. São bem conhecidas as intervenções de Smithson sobre os não-lugares e os seus denominados earthworks não passaram despercebidos. Se afinarmos a perspectiva encontramos raízes da correlação entre a prática artística e o pensamento e planificação do território muito atrás, do célebre tratado de Vitrúvio às notas de Leonardo, passando pelos pintores românticos, como Friedrich, sem esquecer os arquitectos do Barroco, o Realismo, o Impressionismo e até o Expressionismo abstracto. A preocupação paisagista perpassa, pois, a obra de quase todos os grandes nomes da arte ocidental, sem que o declínio do academismo e da pintura de cavalete haja apagado este interesse.

Se alguns artistas cartografaram cordilheiras e paragens exóticas, outros concentraram-se nas variações da natureza ao longo do dia ou das estações do ano, canonizando vistas e panoramas do território que ainda hoje povoam o nosso imaginário; outros houve que, preocupados com a preservação e qualificação dos lugares, desenharam com o material vegetal e inerte, restabelecendo equilíbrios entre os elementos naturais e artificias. A obra de Perejaume evidencia bem os diferentes níveis de enunciação da paisagem. Chega mesmo a considerá-la um cadastro dos ritmos naturais e do vigor cultural dos povos, reservando-nos um conjunto de metáforas antropomórficas que extravasam o enquadramento contemplativo e a preocupação estética com o sublime.

Actualmente, a transformação da paisagem é condicionada pela velocidade dos acontecimentos, supostamente globalizados. A visão do território está submetida às condições de uso. Aquilo que vemos oferece sempre possibilidades de interpretação determinadas pelas distintas escalas e velocidades: se um caminho diminui a distância entre dois pontos, também “abrevia” o lugar que atravessa. Se à redução da distância juntamos a maior velocidade de deslocação percebemos que a terra perde valor e se aplana para nos permitir deslizar sobre ela. Perejaume pergunta até que ponto tem de ser assim, “se a função primordial do território é servir-nos de conexão, de campo transmissor, de espaço atravessado por todo o tipo de artifícios mecânicos, luminosos e sonoros, que tratam na realidade de iludi-lo, de silenciá-lo.”

Qualquer paisagem será então, mais que um cenário turístico, um espelho: um arquivo imaginário, à maneira de Malraux, povoado pelo espectro de projecções que animam um mundo ao qual se não acede ignorando o legado plástico da modernidade, sobretudo as analogias de Smithson que estabelecem correspondências entre a história do território e a sedimentação da mente. O território é então passível de ligar o passado ao futuro. Quando o continuum cultural e o equilíbrio natural são interrompidos, produzem-se anacronismos, uma espécie de amputação amnésica que apaga referências e, em regra, não traz nada melhor em sua substituição. A repetição de fenómenos catastróficos para a paisagem produz uma difusa impressão de colapso e de ausência.

O interior do país vive precisamente nessa contradição cruel entre o afã de ser global e a fugacidade que vota os lugares ao desuso. A aceleração económica e tecnológica ditou novas magnitudes físicas e orográficas, originando a perda de realidade, de compostura e de vida dos espaços intersticiais, com efeitos a prazo no sentimento de pertença aos lugares e às comunidades. Na arte contemporânea, a “representação” evoluiu para a “inscrição” na paisagem, que desde a Antiguidade integra o âmbito territorial e a urbe e tem uma dimensão heterotópica, incompatível com o pitoresco. Assim, enquanto signos de identidade, as paisagens acumulam tempos e velocidades. Podemos mesmo chegar a encontrar nelas futuros escondidos. Haja capacidade de vê-los!

Por: Francisco Paiva

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