O inverno são noventa dias e já passou mais de metade. É verdade que o frio a sério ainda não veio, nem a chuva, mas é um alívio pensar que o pior já passou. Os anos já pesam e sinto-me mais vulnerável aos desconfortos de Fevereiro, sobretudo agora que fiquei sozinho em casa. Na rua não se ouve ninguém já, e há vários dias que tenho estado atento. No último domingo, mais soalheiro, dei um passeio pela aldeia na esperança de encontrar alguém mas não me cruzei com vivalma. Suponho que tivessem ido aos montes procurar lenha, agora que está enxuta.
Ouço mal já, pelo que me não incomoda tanto o silêncio, e por vezes confundo a falta dos ruídos normais da rua com a minha condição e os meus achaques de velho, mas eu próprio começo a achar que é de mais. Durante dias, ao longe, ouvia uivar um cão, de certeza preso em algum lado. Ao fim de algum tempo parou. Outros animais já não há, e eu próprio não quero nenhum, que ainda exigem forças que os velhos não têm e nem sequer, convenhamos, compensa tê-los. As pequenas reformas e a horta chegam para o essencial e as despesas também não são muitas.
O pior são as doenças e os medicamentos. Já não há carreira nem táxi para se ir à vila e nem sei se ainda lá haverá centro de saúde. Também é mau já não haver televisão. Foi como se de repente tivessem apagado de vez o contacto com o exterior e nos tivessem fechado aqui.
Para conversar ainda tinha o meu vizinho, mas não o vejo há semanas. Sei que está em casa, já que tem a luz acesa na cozinha, mas não abre quando lhe bato à porta e não há fumo a sair-lhe pela chaminé. Ainda pensei em chamar alguém para ver dele, se tivesse como e soubesse a quem. Para além disso o meu vizinho é de luas e muitas vezes prefere ficar fechado e não ver ninguém. Deve ser isso, deve ser outra dessas luas e é a minha imaginação que o vê morto, caído no chão do corredor, já a cheirar mal e o cheiro a infiltrar-se debaixo da porta e a chegar à rua. Amanhã, se me não responder, arrisco e arrombo-lhe a porta.
Por: António Ferreira