Arquivo

In memoriam

Bilhete Postal

Em memória de todos os que defenderam anónimos a causa pública. Em memória dos que terminaram listas de espera, dos que arrumaram conflitos insanáveis, dos que recorrendo aos poderes que lhes eram confiados decidiram em favor do mérito, decidiram em favor da eficiência (produção eficaz por menor custo), apoiaram e elevaram o trabalho, confiaram e partilharam as decisões. Em memória dos que deram horas e sorrisos, os que distribuíram de modo gratuito a luta contra a diversidade. Em memória de todos eles me revolta hoje a destruição do Estado como se este fosse o monstro que atormentava as crianças nas noites de trevas e ventos. O Estado e a sua importância social têm de estar para lá desta visão redutora de horários e de prepotências senis que foram invadindo a coisa pública. Mas não pensem que um Estado mau resulta de uma entidade abstrata. Um mau Estado resulta de pessoas incapazes, de direções que não cumprem a sua função, da perpetuação de incompetentes, da negligência das instituições, do silencio de muitos inocentes, da ausência de vigilância, do medo de ofender, da experiência tenebrosa dos tribunais. Mas o Estado é feito de pessoas e escusavam de ser escolhidas pela familiaridade, pela desfaçatez, pela cor política. Hoje somos governados por pessoas que encontram no Estado o papão das suas noites frias. Mas o Estado é o caminho que permite oportunidades aos menos favorecidos, é o que nos dá igualdade na saúde, é quem nos pode apoiar no infortúnio, é quem deve proteger algumas crianças do azar de ter alguns pais, é quem nos deve proteger da solidão na ausência de bons filhos. A visão de um Estado total é contrária a esta ideia de um fundo público (construído de dinheiro de privados) bem gerido. O Estado não é para dar tudo, porque leva à falência dos recursos. Mas o Estado pode e deve gerir-se melhor. A “coisa pública” é um espaço que tem de conjugar educação e vigilância com dádiva, reflexão e ensino com direitos, explicação e recordação dos deveres de modo apertado. O Estado devia garantir a segurança, a educação, a saúde, a capacidade de acesso aos lugares, e uma justiça imparcial. Tudo isto custa dinheiro que é retirado aos impostos. Tudo isto retira dinheiro aos ganhos privados dos empreendedores e dos trabalhadores privados. Mas também é tudo isto que nos converte num país onde se pode sair de noite, onde é fácil viver, onde é aprazível passar a velhice.

O Estado não é o nosso inimigo se não construir obras faraónicas, se souber criar estratégias dentro da sua fronteira de identidade, se não se envolver no futebol profissional, se não se envolver no casino financeiro, se não gastar mais do que tem estipulado, se não construir uma piscina em cada vila, se não construir um teatro de luxo em cada cidade. O Estado não carece de obras de milhões em cada escola, nem de oferta excessiva de medicamentos ou de serviços de saúde. O crime cometido contra a “coisa pública” é europeu e consistiu num deslumbramento internacional que passou por construção de verdadeiras enormidades sem sustentação: como a Cidade da cultura em Santiago de Compostela, o sistema de comboios da Grécia, a cidade Olímpica grega, os estados de futebol portugueses para o Euro e uma quantidade inesgotável de outras travessuras que vale a pena visitar. Em nome do Estado da defesa dos direitos dos cidadãos, alguns acharam que podiam perpetuar as suas existências. A vaidade e a falta de senso conquistaram as últimas duas décadas e criaram o imbróglio presente. O problema não estava no Estado, estava na governação dele.

Por: Diogo Cabrita

Sobre o autor

Leave a Reply