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Hortensia Bussi Soto de Allende

A salvadora do povo. A companheira do seu marido. A sustentável leveza do ser. A campeã dos Direitos Humanos. A advogada dos pobres. A Presidenta do CERNAME (Centro de Recuperação Nacional da Mãe e da Criança). A exilada. A Primeira-Dama. A professora dos pobres. A pobre que foi Primeira-Dama. A mulher fiel ao seu marido traquina e infiel. A gata borralheira. A mais activa na luta contra a ditadura. A viúva de um Presidente martirizado. O monumento histórico do Chile. A mulher impossível de olvidar, de desaprender. A arqueóloga coleccionadora de antiguidades, mapas e excelente educadora da sua família na procura de esse quem somos nós, para onde é que vamos. A lutadora que, por causa de doença, falou em público, pela última vez, a 26 de Junho de 2003 para comemorar o aniversário do seu marido, que faria, nesse dia, 95 anos de idade. A escoliose mal lhe permitia andar. Tantos títulos possíveis para um pequeno comentário como este.

Hortensia Bussi Soto, filha de Ciro Bussi, membro da marinha mercante, não chegou a conhecer a sua mãe, falecera quando ela era criança, nasceu em Valsaríamos, onde estudou os cursos preparatório e secundário. Quando terminados, transferiu-se para Santiago e começou a trabalhar como Bibliotecária no Centro de Estatísticas, motivo que a levou a estudar esta teoria. Com o seu trabalho pagou os estudos do que mais amava: Historia e Geografia. Trabalhava de dia, estudava à noite. Após cinco anos, formou-se nas suas ciências, começando a ensinar em colégios secundários até ser convidada como Assistente da Cátedra de Historia e Geografia da Universidade do Chile, em Santiago, onde tinha estudado. Em Janeiro de 1940 as terras chilenas foram sacudidas por um terramoto Na assistência aos feridos conheceu um médico, que lhe fez a corte, quatro anos mais velho do que ela. A beleza de corpo e alma de Hortensia, não o deixavam dormir nem pensar. Assim, era melhor casar. Pede-a em matrimónio e casam-se a 17 de Março de 1940, ela com 26 anos, ele com 32. Os dois social-democratas de pensamento Marxista, ele, também, Mação. A 19 de Março de 1933, o seu marido e outros fundaram o Partido Socialista do Chile. O namorado integra a Comissão Parlamentar entre 1937 e 1942, como Deputado. Nem tempo para atender doentes nem para namorar, excepto seduções de meia hora. O galã foi Ministro de Salubridade (1939 a 1942) do Governo chefiado por Pedro Aguirre Cerda, membro do Partido Radical. Por outras palavras, entre 1940 e 1943, Doña Hortensia tem que tomar conta das crianças: Maria Paz, Educadora de Infância, Maria Isabel, hoje Deputada Socialista e Beatriz, morta tragicamente na República de Cuba, após o assassinato de seu pai. Em 1945, enquanto acompanhava o seu marido nas actividades políticas, colaborou para a sua eleição de Senador por Valparaiso e Aconcagua – Vigia de Pedra em Mapudungun. Doña Tencha, como todos a chamavam, foi primeira-dama desde o dia que casou. O seu teimoso marido, que apenas ela sabia acalmar, apresentou-se, convicto, de que um socialista marxista podia ganhar as eleições por sufrágio aberto e popular: nem revoluções, nem matanças sem piedade. Perdeu para Ibañez, em 1952, por escassa margem de votos, com muita distância para Alessandri, em 1958 e grande margem, para Frei Montalva, em 1964. As divisões partidárias, que Dona Tencha sabia existirem no Chile, fez dizer-lhe: é a tua vez, apresenta-te e ganha. Assim aconteceu. A mulher trás o poder. Foi a melhor Primeira-Dama do Chile Republicano, especialmente pela sua dedicação no tratamento de crianças e de suas mães. A título de exemplo, faz assinar o Presidente da República, por acaso seu marido, um Decreto para distribuir um litro de leite grátis todos os dias. Foi a Jenny Marx de Salvador Allende.

Após trinta anos, dos meus 40 de exílio, fui convidado ao Chile, louvado, condecorado. Pus uma condição: entrava no Chile, sendo a minha primeira actividade colocar cravos vermelhos no túmulo do Presidente derrubado e assassinado por ordem do despojado de poder mais tarde, um tal Nixon de outro país. Após o acto, cumprimentaria família e comitiva. Foi aceite. A realidade é paradoxal: ao sair do túmulo cruzei-me com Doña Hortensia, após 17 anos de exílio no México, a sua filha Maria Isabel, deputada socialista e a minha colega nas letras, essa filha inventada, Isabel, filha de Ramón, o cunhado de Doña Hortensia. Voltei ao túmulo, retirei quatro cravos e ofereci-lhos, com um beija-mão de admiração e respeito para a mulher que a 11 de Setembro de 1973, à noite, recebeu um caixote fechado com pregos e duas letras: NN. A Senadora Laura Allende Gossens de Pascal e ela, corriam pelos sítios e ruas do depósito de cadáveres a gritar, sem pranto nenhum, estas palavras: Saibam todos que no caixote jaz o corpo do Presidente Constitucional do Chile. Ambas aceitaram o avião Presidencial de Echeverria, que Governava o México. País que as acolheu como Primeira-Dama a Tencha e a Senadora Laura, outorgando uma pensão: tinham perdido tudo.

Voltou ao Chile em Setembro de 1988. Milhares à sua espera, nós os de fora, a ver pela televisão. Lia-se num lenço: Bienvenida Primera Dama. A sua resposta foi: Saludo con emoción al pueblo chileno, a él debo o meu retorno a la patria. Levou consigo o Prémio Lenin da Paz, o Prémio Ana Betancourt de Cuba, o Honoris Causa da Universidade de Bruxelas, e a qualidade de Cidadã Honorária de Florença, Pisa e Parma. Bem como homenagens e reconhecimentos recebidos no México, França, Espanha, Reino Unido e Venezuela, entre outras nações.

Chamada carinhosamente “señora Tencha” pelo gentio, a sua lavor política e democrática podem-se sintetizar nas participações nas campanhas de Salvador Allende, o seu trabalho durante o governo da Unidade Popular, o seu desempenho na solidariedade internacional com o Chile, o seu apoiou à campanha do Não deve continuar, ao plebiscito do ditador. A sua colaboração na Fundação Salvador Allende, o apoio à Central Única de Trabalhadores – CUT – e a Concertação de Partidos pela Democracia. Nestas horas, em que escrevo, a homenagem é massiva no Chile e noutros países.

Escrevo em Portugal. No Chile, em Santiago, transcorre o Funeral de Estado, com a multidão, os Presidentes, cabeças coroadas e o nosso estóico silêncio de aí não estar. Sua Excelência que deu a vida pelo povo, deve ir com ela.

Algures, a 20 de Junho de 2009.

Por: Raúl Iturra

Hortensia Bussi Soto de Allende

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