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Histórias Mal Contadas

Quebra-Cabeças

No passado dia 14 de Julho, várias organizações francesas ameaçaram boicotar o tradicional desfile nos Campos Elísios. O pretexto era a prisão de José Bové, detido depois de uma manifestação contra os OGM em que o agricultor/activista/sindicalista destruiu algumas plantas geneticamente modificadas. É esta, a dos organismos geneticamente modificados, uma causa bonita e actual, com uma pequena ponta de tecnologia, tal como convém aos nossos tempos. Outra causa, na qual José Bové é militante destacado, é o combate anti-globalização. Também aqui arrisca uma pena de prisão, por ter destruído um restaurante Mac Donalds. Seja como for, temos neste momento meio mundo a exigir a libertação “imediata” de José Bové.

Sucede que o senhor, como deixei dito, se dedica em França à agricultura. É ele, portanto, mais um dos muitos beneficiários da Política Agrícola Comum. E esta, para quem não sabe, é responsável por boa parte da fome e do subdesenvolvimento do terceiro mundo. É que os actuais subsídios aos agricultores europeus fazem com que estes consigam colocar os seus produtos no mercado mundial a preços inferiores aos preços de custo. O mesmo efeito têm os subsídios aos agricultores norte-americanos e japoneses, que destruíram, distorcendo-os gravemente, os mercados do algodão, do trigo, do milho, do arroz. Um agricultor africano, que não dispõe das capacidades tecnológicas e muito menos dos subsídios dos agricultores europeus, nunca irá conseguir colocar os seus produtos em lado algum – muitas vezes nem na sua própria terra. Os militantes anti-globalização, com Bové à cabeça, reclamavam por isso de barriga cheia e consciência pouco tranquila.

Em Cancun, na recente e falhada cimeira sobre o comércio mundial, estava em cima da mesa, entre outros assuntos, a possibilidade de os países ricos acabarem com os subsídios aos seus agricultores, assim repondo a livre concorrência no sector. Como se sabe, a cimeira falhou, e por vários motivos. Verificou-se, desde logo, a geral impreparação técnica dos representantes dos países pobres, associada a alguma intransigência que serviu de pretexto para finalizar abruptamente a cimeira, sem qualquer resultado útil. E no entanto o Banco Mundial tinha previsto que o seu sucesso, levando a mercados mais livres e à redução dos subsídios aos agricultores dos países ricos, poderia levar a que em 2015 o rendimento mundial tivesse subido mais de 500 biliões de dólares por ano, 60 por cento dos quais em favor dos países mais pobres. Tinha previsto ainda que esse sucesso retiraria da pobreza mais de 144 milhões de pessoas.

Lembro-me agora do muito que se disse depois do onze de Setembro. Que os Estados Unidos eram responsáveis pela pobreza e pelas injustiças que há no mundo e que os atentados tinham aí a sua possível explicação. Tudo é possível, não é?

Por: António Ferreira

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