Arquivo

Hipocrisia social

Tresler

Mostrem lá a folha de vencimentos (Macário Correia, nos jornais)

Tema: a reboque da crónica recente de outro cronista desta praça, viro-me para aquilo que acho injusto e discriminatório nas diferenças entre profissões ao nível daquilo que é suposto ganharem. Num tempo em que todos achamos estar injustiçados, é o tipo de crónicas que mais apetece fazer a qualquer cronista. Porque saem logo, sem engasgamentos. Porque, depois do desabafo, permitem deixar o lugar vago para outros voos. Por serem as crónicas que mais apetece fazer, convém alguma contenção, não vamos cair na asneira e no mal da inveja, tão portuguesa, tão tentadora. Aí vai. Por prudência não tocarei na minha profissão (que deixarei para outras penas).

Não consigo entender porque é que certas profissões tiram (quase) tanto em horas extraordinárias ou em suplementos como no ordenado normal: forças de segurança e profissionais de saúde. Ou há profissionais a menos ou há horas extraordinárias a mais (algumas fictícias) ou há serviços que fazem parte do próprio conceito-base dessa profissão e não deviam ser subsidiados ou aquilo que é feito por 4 podia ser feito por 2 ou 3. Por seu lado, em autarquias e repartições públicas, os ordenados de muitos quadros vão ficando bem “compostinhos” com essas horas, que muitas vezes já não são vistas como uma exceção mas como um direito. Quanto aos médicos, as tabelas proibitivas das horas extraordinárias (na iminência de baixar?) levaram mesmo há poucos dias o bastonário a sugerir mais um imposto sobre o “fast-food”, suponho que para que o ministro aguente a verba para essas horas. Um cronista (médico) queixava-se há poucos dias num dos últimos textos de os médicos (não disse quais nem em que situações) ganharem uns humilhantes 12 euros por hora, o que, multiplicado pelas cerca de 180 horas do horário mensal, dará cerca de 2.000 euros. É pouco? Não se indica é quanto somam as folhas de vencimentos mensais (reais) dos médicos (reais) do SNS que, pelo trabalho realizado no hospital da Guarda, aproveito para informar, alcançam a média (repito, a média) de cerca de 7.500 euros. Aproveita-se para perguntar mesmo a sério: como é que se chega a estes ordenados? Como é que se aguentam tantas horas extraordinárias sem os profissionais se irem abaixo? Ou como é que é possível pagar preços tão exorbitantes a essas horas?

Não consigo entender (com ou sem crise) porque é que continua a haver profissões em que as reformas aparecem à volta dos 50 anos (sim, sem qualquer doença). Por exemplo nas forças de segurança e militares. Quando os agentes da polícia ou os guardas da GNR já adquiriram o saber, o equilíbrio na atuação, a ponderação, vão-se embora para casa. Que argumento pode mandar um homem de 50 anos para casa, quando se defende que a atuação das forças de segurança não deve ser de ordem física mas de forma a impedir e evitar a violência? E não haverá uma forma de preservar os mais velhos em missões menos arriscadas ou especializadas? Não, só mandando-os para casa… Quanto aos militares, são sempre os mesmos queixumes pela “honra” ofendida quando se lhes pede a aceitação da redução de privilégios, a mesma amargura, o mesmo desespero por um dia de atraso na entrega do vencimento (lembram-se?). Os governantes baixam a cerviz ao seu severo olhar ou das suas associações representativas, como se de raça superior se tratasse e tivéssemos que suportar com privilégios de tempo de guerra as promoções generalizadas a que os ministros foram fechando os olhos e que agora toleraram. Num jornal da semana passada vinham também os militares como isentos de taxas moderadoras: com um sistema de saúde já tão protetor para eles, como é que isto se justifica ainda? Macário Correia veio dizer aquilo que tantos de nós já andávamos a pensar há imenso tempo: mostrem lá as folhas de vencimentos! Irra!

Não consigo entender os subsídios de alojamento aos juízes mesmo quando vivem na mesma localidade há anos e anos, mesmo quando já se reformaram, mesmo quando recebem subsídio marido e mulher. É fartar, vilanagem! E não se lhes dá a volta… Há quanto tempo se fala nisso?

Não consigo entender a irracionalidade da divisão entre PSP e GNR, ambas com funções idênticas, ambas a recusar a fusão, que permitiria fechar postos que gastam rios de dinheiro só para funcionar, aproveitar pessoas para a função de fazer segurança, poupar imenso dinheiro. Ia custar, ia haver choro e ranger de dentes, os autarcas iam chorar os seus pequenos postos “de proximidade” mas veem outra saída a tanto dinheiro desperdiçado? Basta pensar na Guarda (cidade) com as sedes das duas corporações a distar meia dúzia de metros.

Não consigo também entender os subsídios e benesses que instituições e empresas públicas (e ex-públicas) concederam e concedem como benesses aos seus trabalhadores, diferenciando assim serviços que têm e que não têm benesses. Instituições há que criaram “complementos de reforma” para os seus funcionários para “compor” as reformazinhas! Empresas ex-públicas há que, à custa das faturas aos consumidores, pagam as propinas da faculdade aos filhos dos seus funcionários. Em certos serviços do Estado os emolumentos passam diretamente para o ordenado dos trabalhadores. Através dos Serviços Sociais muitos serviços públicos despejam também dinheiro para os seus funcionários duplicando-lhes, por exemplo, os apoios da ADSE. A Câmara de Lisboa tem mesmo uma clínica para os seus funcionários. Quem a vai sustentar?

Abençoados professores das faculdades e politécnicos, administradores dos bancos, juízes e procuradores, militares e médicos, que sois tão invejados e que vos queixais tanto! Felizmente, pensam os pobres e remediados, de vós não será o reino dos céus, já que Ele, diz o Magnificat (tradução sob protesto), “aos ricos despediu de mãos vazias”.

Dito de outra maneira, até onde pode chegar a dissimulação e a hipocrisia social de uma classe num momento como este? Meu Deus, o que é que a imprensa anda a fazer, que não divulga? Dava tanto jeito conhecermos a folha de vencimento (real) de certas profissões queixinhas em momentos diferentes da carreira! Anda mesmo meio mundo enganado ou iludido pelo outro meio. E já não falamos nos jeitos, cunhas e quejandos, que por aí o nosso povo ainda vai tentando imitar os poderosos…

Por: Joaquim Igreja

Sobre o autor

Leave a Reply