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Hermínio, a estrela da Serra

Mais de um ano depois da primeira exibição do documentário “Ainda há pastores?”, pouco ou nada mudou na vida do pastor mais mediático de Portugal

Hermínio dispensa apresentações. É a personagem incontornável do documentário “Ainda há pastores?”, de Jorge Pelicano, o mais jovem pastor dos Casais de Folgosinho, lugar acomodado num recôndito e preservado vale entre Gouveia e Manteigas. O documentário transformou-o no pastor mais mediático do país e também no mais viajado.

O INTERIOR foi encontrá-lo não muito longe de casa, pouco depois das três da tarde. Mas a súbita chegada de estranhos não o incomodou, habituado que está agora a ser importunado – é o outro lado da fama. Seguindo o rebanho, munido do imprescindível alforge e acompanhado pelo Leão e a Serrana, os fiéis companheiros de estimação, depressa Hermínio se revelou um contador nato de histórias. Do alforge, onde, aparentemente, parece “caber este mundo e o outro”, foi tirando pão, chouriço, queijo e desfiando as histórias «loucas» de um pastor que, subitamente, passou a vedeta. «Esta manhã baldei-me», confessa desde logo. É que o dia só começou as oito da manhã, duas horas mais tarde do que devia. Diariamente, a rotina não varia muito nos Casais de Folgosinho. Para Hermínio, o ritual sagrado ao acordar «é o cigarro». Depois, há outros mais exigentes, como ordenhar o gado, serviço geralmente «aviado lá para as 7h30». O resto da jornada passa-se, aqui e ali, nos cenários deslumbrantes da Estrela e na companhia de ovelhas, cabras e cães. Isto até ao pôr-do-sol, quando o pastor tem que «acomodar o gado» e repetir a ordenha.

Diariamente, também passam por ali «os compradores do leite», vendido a um euro o litro. Num dia «que corra menos mal», explica o pastor com alguma retórica, as mais de 100 ovelhas «dão mais ou menos 40 litros». É preciso pedalada para acompanhar o discurso de Hermínio. «Às vezes abalo e já só aqui chego de madrugada. Descuido-me nas horas e já nem durmo, tenho de andar aí de “directa”», garante. Hermínio gosta de conviver. E a fama veio dar uma ajudinha. Mas o que mudou na vida deste guardador de rebanhos? «A situação é esta. Fiz mais amigos, fui a mais lados e até foi bom, porque eu gosto disso», admite. Antes, «havia dias em que não via aqui ninguém e muito menos quando chovia… Mas agora vem cá sempre gente ver de mim, tirar fotografias e eu nem me importo», continua. No entanto, também confessa haver dias «em que isto até aborrece». E os novos excursionistas à Senhora de Assedasse até lhe prometem que o levam «aqui e ali», mas raras vezes regressam.

Recordações do Brasil

Para além disso, Hermínio, que agora tem telemóvel, não perde uma oportunidade de conversar com o seu ídolo: «Ainda no Natal liguei ao Quim [Barreiros]», envaidece-se. E dinheiro? «Isso é que não, não ganhei nada com o filme», revela. «O melhor de tudo foi ter ido ao Brasil», sublinha. A viagem aconteceu em Julho do ano passado, quando o documentário foi distinguido no Festival Internacional de Cinema e de Vídeo de Góias. Apesar das honras de estrela, esta ida aos trópicos custou-lhe «para cima de 500 euros», porque teve que assegurar metade dos custos. «Mas, oh se valeu a pena!» exclama. Sobraram as fotografias, as mil e uma histórias e as lembranças das «gostosinhas». Sem vergonha, Hermínio esclarece logo: «Eu era um doido lá no Brasil». Apesar de ter sido a sua primeira viagem, garante que não teve medo de andar de avião, o problema foi «estar nove horas fechado». Susto a sério foi quando, em pleno Festival, e aquando do anúncio do prémio, «o Pelicano resolveu desmaiar e teve “qui si chamá a ambulância», brinca com sotaque.

Outras peripécias guardou-as para a ordenha do fim de tarde, nomeadamente o facto do alforge quase não ter passado na alfândega do aeroporto – «nem a garrafa de vinho», acrescenta. Agora na Serra, Hermínio tem saudades das caipirinhas, mas acrescenta logo que vai «matá-las a Manteigas». Já em terras de Vera Cruz nunca se lembrou do gado até ao momento em que o filme foi exibido: «Lembrei-me das minhas ovelhas e custou tanto estar longe», admite. Tirando isto, os dias continuam a suceder-se às noites em Casais de Folgosinho e nada mudou na rotina do “mais louco” pastor da Estrela. Os tempos da escola, esses já vão longe, da altivez dos seus 33 anos. «Eu não me dava lá», confirma em jeito de risota. «Estava lá sempre fechado, às vezes fartava-me e saltava pela janela. Depois, quando chegava a hora, os meus colegas chamavam-me e eu voltava a entrar por onde tinha saído», ri-se. A terceira classe «chegou», acrescenta, e não esconde que esta é a vida de que gosta. Hermínio parece viver em simbiose com o vale que o rodeia.

Mesmo assim, admite que ser pastor «é uma vida dura e solitária». E, por estas e por outras, descai-se: «Para o ano vou-me embora». Mas não adianta mais. «Eu cá sei» e termina o assunto, com a obstinação de uma verdadeira estrela. A verdade é que há poucos pastores como Hermínio. Há 40 anos, os Casais de Folgosinho eram um verdadeiro santuário de guardadores de rebanhos, «havia mais de 10 mil cabeças de gado», recorda a ti’Emília, para quem a renda de 2.500 euros anuais que paga aos proprietários do Casal, «que estão em Lisboa», parece cada vez menos convidativa. De resto, dos cerca de 20 Casais que constituem o lugar, apenas sete ainda são habitados. Por ora, o Casal do Mondego, que já é conhecido como o “Casal do Hermínio”, ao contrário da maioria – ruínas silenciosas no coração da Serra – ainda resiste. Lá continuam, junto da capela da Senhora de Assedasse, a ti’Emília, o ti’Albino e, claro está, o Hermínio – que, talvez, daqui a uns anos venha mesmo a ser a última estrela da Serra.

Rosa Ramos

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