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Guatemala [segundo acto]

Theatrum mundi – Para a Idalina Gomes, in memoriam

Que les vaya bien! – Desde o primeiro dia, as palavras do senhor Adolfo ecoaram como uma espécie de amuleto para o que havia de seguir-se, em cada dia. Desci os metálicos degraus do autocarro, entre hesitante e ansioso, e aterrei no solo poeirento de San Andrés Itzapa. (O que nos leva a escolher os nossos particulares trajectos? Como dispomos do direito natural, inalienável, de ir e andar de um lado para outro, neste mundo? Que tipo de magia faz de lugares distantes, a nossa casa, e de nomes nunca antes pronunciados, hábitos imprescindíveis da memória?) Já longe das hordas de turistas que se arrastam pela colonial Antigua, a San Sebastián de los Caballeros dos tempos da conquista espanhola, chegava finalmente à Guatemala. À Guatemala dos indígenas que constituem sessenta por cento da população total e são, no entanto, tão invisíveis. À Guatemala herdeira das atrocidades da guerra civil, que se arrastou até 1996 e deixou marcas indeléveis, sobretudo nos mais desprotegidos (como sempre). À Guatemala dos desastres (não tão) naturais e dos recursos que se vão esgotando pela irresponsável acção humana, como a floresta e a água potável. À Guatemala da violência diária e das inúmeras crianças que não podem dar-se ao luxo de ir à escola. (Oficialmente, o ensino básico é gratuito e universal. Na prática, a teoria é outra.)

Matilhas de cães esquálidos vagueiam pela praça do mercado, e paragem dos autocarros, revolteando entre o lixo acumulado, em busca de uma migalha. E no entanto, esquálido não é o termo apropriado. O que logo impressiona ao chegar a Itzapa são esses fragilíssimos vultos prestes a esvair-se à mais ténue, à primeira, rabanada de vento. A praça central há muito foi tomada por ossadas titubeantes de pelame esparso pelas chagas que nunca hão-de sarar. Diante do meu olhar, a um nível térreo, desata-se uma luta de vida e morte pelo escasso que vai surgindo para comer. Quando do mundo dos humanos emerge a mais mínima promessa de refeição, os destroços caninos puxam pela força que ainda resta para lutar por ela. De alguma forma percebem que, tão cedo, não terão outra. Mas no mundo térreo em que vivem, o mais forte não se coibe de arrancar o bocado, já meio mastigado, da boca dos mais fracos. Ao reviver o episódio, e depois de seis semanas entre Antigua e Itzapa, imagino se esta recepção não seria a metáfora do quotidiano guatemalteco. Podia ser.

Sigo os restantes voluntários pelas ruelas da imensa aldeia. Encontro-me num labirinto, e serão precisos vários dias até sentir que conheço o caminho. Não há nada para ver nas colinas por onde se estende Itzapa. Tudo é triste, instável, a ponto de soçobrar, de um escuro interrompido, aqui ou ali, pelas cores vivas dos trajes típicos das mulheres indígenas. E no entanto, a vida que passa à minha volta não deixa, nessas seis semanas, de atrair o meu olhar. Em Lisboa, era impossível imaginar Itzapa; em Itzapa, a realidade invade aos meus sentidos com a potência de um furacão. O caminho leva-me para fora do centro da comunidade, e aos poucos vão surgindo os templos das igrejas evangélicas americanas fixadas no país. Ei-los, os mil e um altares da urgente necessidade de salvação dos guatemaltecos mais pobres, da Beth-el de pórtico neoclássico ao Refugio de las ovejas, mera cabana de tábuas mal pregadas e pintadas de branco. No muro do primeiro pode ler-se um provérbio de teor bíblico: «instruye al niño en su camino, y aun cuando fuere viejo no se apartará de él». Não deixa de ser verdade mas, na Guatemala, a ajuda exterior vem quase sempre condicionada à conversão religiosa. A este propósito, o Dominic (coordenador do projecto em que vou trabalhar) haverá de confidenciar-me que a salvação na Guatemala não está na religião; está na educação das crianças praticada de forma incondicional.

Percorro o labirinto atrás dos restantes voluntários, num ambiente de favela distante das do Rio de Janeiro. Pelas paredes de adobe distribuem-se os restos de uma campanha eleitoral passada, não os cartazes que bem conheço mas as pinturas murais que, por cá, ficaram associadas ao fervor revolucionário da segunda metade dos anos setenta. De repente, saídos não se sabe bem donde, aparecem os miúdos – os patojos. Vêm a correr receber-nos aos pinotes, com uma alegria desbordante, e escolhem os seus professores preferidos para se abraçarem ou se encarrapitarem às suas cavalitas. A escuelita Pájaro de Fuego já se vê ao longe, com os seus muros de tábua e adobe que algum voluntário anterior pintou de vivíssimas cores.

Por: Marcos Farias Ferreira

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