Arquivo

Guarda, de 1199 a 2831

Opinião

Oito séculos de história e 8 séculos de futuro. A cidade imagina-se antes e depois. Da muralha adivinha-se um aglomerado, dominado por uma peça central – a catedral, que também podia ser um castelo. Um carácter austero e militar, indispensável naqueles tempos. Daqui até lá abaixo descem 1.056 metros, e se o sonho existisse, daqui podíamos ver o mar ou até mesmo os Pirenéus. Chega-se, sai-se ou atravessa-se pela rua dire(i)ta que passa também por S. Vicente. Marca-se uma entrada ou uma posição. A Torre (dos ferreiros), exercício de sobrepor blocos uns sobre os outros, sem desmoronar. Durante os dezasseis séculos da nossa história, a Torre cresceu, à razão de um andar por ano. Tudo cabe lá dentro, inclusive o Mundo. Ali podemos encontrar os produtos mais exóticos das galáxias mais distantes, os jardins suspensos da Babilónia, ou até mesmo aquelas máquinas de teclados pesados que imprimem letras em folhas de papel, sem direito a correção ortográfica. A cidade é agora também vertical, altimetrias distintas para modos de vida distintos. A cidade foi sempre assim, subir e descer. Os corpos balanceiam-se neste constante vai e vem, nesta luta de se edificar numa topografia impossível. Todos queremos estar perto, quando não há forma de chegar mais rápido. Mas hoje, ou no tempo em que escrevemos esta história, os comboios de altíssima velocidade são agora um dos centros da cidade. A Estação, no cruzamento de caminhos e destinos, é uma estrutura quase invisível que permite ver as estranhas do subterrâneo. E à medida que um comboio avança até ao coração da velha cidade, vai abrindo novas perspetivas sobre o terreno que vai escavando, bem lá no fundo. Passa pelo Matadouro, paragem obrigatória, aqui ainda fácil de alcançar. Subimos à superfície. Das salas de paredes transformadas em telas de cinema experimental passamos às frutas e legumes que se cultivam dentro desta cidade. A Viagem continua. A cidade reinventa-se e podemos ir até onde nós quisermos. Deixamos a cidade e chegamos aquela floresta, onde há um edifício, ou antes, vários edifícios que se escondem. Não se percebe muito bem, quando é que a cidade deixou de ser cidade e se transformou em floresta. Uma e outra estão intimamente ligadas. E de repente, onde se curavam os ares passam-se a curar outras coisas. Os belos edifícios, de dimensões generosas, abertos sobre a paisagem e com vista para o sol, fazem agora lembrar os castelos da Baviera, no meio da floresta negra. Na cidade ideal, as outras curas já não têm lugar. A função volta a mudar e ali podemos dormir, respirar os ares antigos em quartos remodelados ao estilo do Wes Anderson, onde todos têm o direito à felicidade. Mas a cidade também é uma máquina, ou várias máquinas que se ligam uma às outras, com as mesmas correntes que já o F. Lang utilizava. Os outros centros desta cidade são igualmente importantes ao seu funcionamento. No encontro das vias que vêm de fora e de dentro, há um espaço impossível de alcançar. Se o sonho ajudar, aquele tubo pentagonal branco, vem buscar-nos à beira da estrada e num movimento sedutor embala-nos na espiral do tempo e do espaço. Lá dentro, podemos admirar todas as obras (da arte) do Mundo e na bilheteira, dizem-nos que hoje vieram pessoas do outro lado desse mundo, só para aqui estar. Podíamos ainda passar por aqueles dois corpos tão diferentes e tão iguais um ao outro, onde acontecem espetáculos e conversas para uma noite inteira. A cidade continua a desenhar-se assim, com as vontades que fazem a passarola voar.

Maria Inês Costa*

* Arquiteta

Sobre o autor

Leave a Reply