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«Gosto do teatro porque é efémero»

Cara a Cara – Ana Estêvão

P – Está há seis anos na Argentina. A que se deve este regresso à Guarda?

R – Sempre que posso venho à Guarda, até porque tenho aqui a minha família quase toda. Como é muito longe e caro nem sempre há oportunidade… A última passagem tinha sido há ano e meio, mas antes disso estive três anos sem vir cá.

P – Como surgiu a oportunidade de atuar no Teatro Municipal da Guarda (TMG)?

R – Tomei a iniciativa de contactar com o TMG, que é um espaço lindíssimo, por ser na minha cidade e é para mim um grande orgulho e emoção poder atuar na Guarda. O meu sonho era representar “O acordar” pelas aldeias, porque há muitas pessoas que vivem isoladas e talvez só tenham como opção cultural o que dá na televisão. Como o monólogo tem uma linguagem muito popular e teve uma boa repercussão na Argentina, era, sem dúvida, algo que me daria muito gosto. Mas como só vim por um mês, que é o tempo que tenho de férias, era difícil arranjar os espaços e organizar-me a partir da Argentina. Assim sendo, contactei o TMG, cujos responsáveis se mostraram interessados e pediram para enviar mais materiais. Entretanto enviei um vídeo e tive de me encarregar de conseguir os direitos de autor, pelo que depois me disseram que sim.

P – Porquê a escolha destes dois monólogos de Dario Fo e Franca Rame (“O acordar” e “Eu, Ulrike, Grito”)?

R – Eu já tinha representado “O acordar”, que é uma comédia dramática, na Argentina e foi amor à primeira vista. Adorei o texto e depois a resposta por parte do público. Como tinha a ideia de vir a Portugal, traduzi-o e comecei a ensaiá-lo, mas achei que só um monólogo era pouco para um espetáculo, então comecei à procura de outros monólogos do mesmo autor. O de Ulrike chamou-me à atenção e, quando percebi que a história era verídica, emocionei-me muito e decidi que ia aceitar este “desafio autoproposto” de representar uma personagem tão importante de século XX. Representar alguém real é extremamente difícil porque tenho de estar muito concentrada, conectar-me sempre antes de começar e atuar com isso. Investiguei muito sobre ela, até porque a encarei como um desafio muito grande… Não é um personagem criado, é uma pessoa que existiu e que deu a vida pelos seus ideais; é muito pesado e forte. Além disso, a peça em si e o texto são densos, o que para mim é um desafio grande ao ponto de, quando me apercebi disso, ter pensado no que me tinha “metido”… Só que isso também é muito gratificante porque estou a levar a palavra de alguém que já não está e a maioria das pessoas não sabe quem ela é. No geral, tenho tido críticas muito boas, as pessoas mostram-se surpreendidas. Algumas que me conhecem surpreendem-se porque nunca me tinham visto atuar, outras dizem-se sensibilizadas. Também me dizem que o monólogo da Ulrike é muito forte e que ficam em “suspenso” até ao final da peça. Já o outro dá para descomprimir um pouco e até rir. Para mim é muito gratificante atuar e falar no final com as pessoas que foram ver, não só as que conheço, mas também as que não conheço. Gosto que se aproximem e digam o que sentiram e que sensação lhes provocou.

P – Quais as principais metas enquanto atriz?

R – Isto começou tudo quase como uma brincadeira, mas gosto cada vez mais. É verdadeiramente apaixonante. Tenho mais projetos na cabeça e na Argentina já estou a ensaiar outras duas peças. À medida que vou lendo textos começo a ter vontade de fazer mais e adoraria trazer sempre algo novo ao vir a Portugal. Ou até mesmo estes monólogos que só tive em três salas e poderei explorar um pouco mais. Até porque já vi como é a resposta do público, que era para mim uma incógnita, por ter sido mostrado a um povo com uma cultura própria tão diferente. Tinha resultado muito bem na Argentina, mas não sabia como ia ser em Portugal. Os objetivos agora passam por continuar a atuar e, como temos um grupo de teatro independente, continuar as nossas produções e o que fazemos, participar nalguns festivais e organizar outros. E prosseguir no mundo do teatro, porque gosto e o teatro é efémero. Até disse aos meus amigos que não podem vir que vão perder porque o teatro é um momento e depois já está, é passado. Não é repetível, não há duas vezes iguais, a menos que haja o registo em vídeo e, mesmo assim, não é a mesma coisa. A magia do teatro é essa, daí a importância da relação que se estabelece entre o ator e o público.

P – Quais considera serem as principais diferenças culturais entre a Argentina e Portugal?

R – A diferença mais evidente está relacionada com a classe média de Buenos Aires, que é muito culta, ainda que não se possa comparar essa cidade à Guarda, até mesmo por terem dimensões diferentes. Mas há muita cultura, muitas atividades para fazer e a cultura geral, pelo menos nas pessoas com que me tenho cruzado, é muito boa. São pessoas bem informadas, sedentas de cultura e que lhe dão muita importância. O choque cultural com os povos da América Latina até é dos menores, por influência da imigração europeia. Outro fator prende-se com a dimensão de Buenos Aires, que é tão grande que é difícil encontrarmo-nos, algo que na Guarda – e no país em geral – é mais fácil, porque as coisas estão mais próximas. Também o espírito de reivindicar é distinto. Aqui há muitas pessoas que se queixam, mas não passa disso, e lá, graças à história e maneira de ser dos argentinos, não se calam e saem à rua contestar quando acham que é preciso.

P – Participou em grupos ou espetáculos da Guarda antes de emigrar?

R – Integrei o grupo de expressão dramática quando frequentava a Escola de Santa Clara e chegámos a representar “Os Amores da Ribeirinha” no castelo da cidade. Por acaso no outro dia encontrei a professora Margarida, que era quem na altura estava connosco, e lembrámo-nos desse tempo, que já vai longe. Depois fiz algumas peças de escola e também em Itália, onde estive ao abrigo do programa Erasmus. Nunca quis ser atriz, mas antes seguir algo que me divertia e que começou um pouco mais a sério na Argentina. Chegava ao teatro e tirava tudo aquilo com que vinha do dia-a-dia… E começava a “brincar”. À medida que as coisas foram avançando também me comecei a comprometer mais, mas nunca pensei ser atriz, até porque é difícil viver do teatro independente.

P – Faz parte dos seus planos regressar definitivamente ao nosso país?

R – Adoraria poder regressar. Tenho essa vontade, mas não tenho a organização possível para o fazer. Saí de Portugal há quase sete anos, quando a realidade era muito diferente, e agora vejo que sair do país não é uma opção, mas quase uma obrigação, e isso dá-me muita pena. Os jovens têm se sair constantemente para trabalhar e poder ter uma vida digna e penso que isso é tremendo. Até porque o Estado apostou em nós, na nossa formação, e somos pessoas capazes, só que temos de ir lá para fora para sermos rentabilizados. Tenho vários amigos que trabalham na área da ciência e que tiveram de emigrar, e ainda hoje não conseguem regressar ou estabelecer-se. Eu acho que isso é muito triste, e vem juntar-se a um desfilar de injustiças sociais e não só, pois há também uma impunidade terrível. Ninguém acredita na política e, quando não se acredita na política, não se acredita na democracia e, quando isso acontece, com o que é que ficamos? Temos de ser menos apáticos e mais participativos. E, quando digo isto, sinto-me mal porque estou lá fora, mas digo às pessoas que têm de fazer alguma coisa e falar. Isto deixa-me triste e tenho pena de não poder voltar. Por outro lado, tenho a minha vida organizada lá: trabalho numa escola em que acredito muito e que me dá muitas satisfações não só profissionais, mas também sociais, o meu namorado é argentino… É complicado voltar, mas nunca se sabe, o futuro o dirá.

Ana Estêvão

«Gosto do teatro porque é efémero»

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