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Gipsofila: avó, guardei-te num filme

Opinião – Ovo de Colombo

Mostrou-se no Indie Lisboa 2015 e por aí continua. Margarida Leitão tinha uma vontade aparentemente simples: fazer um filme sobre a avó e com a avó. Mas foi para além disso. Para a realizadora portuguesa, “Gipsofila” (2015) é um projeto mais pessoal do que os anteriores, sobretudo curtas-metragens e documentários.

Embora também documente, a longa-metragem incorpora Margarida Leitão no seu âmago para, num segredo partilhado, nos mostrar as pessoas para lá da objetiva. As gravações começaram em 2012 e prolongaram-se durante cerca de três anos. Sem argumento nem tramas delineadas, o enredo de “Gipsofila” ganhou forma nos momentos partilhados com a avó, maioritariamente num espaço reservado.

Como estamos nós, fãs de cinema, habituados a ver sentimentos fingidos no ecrã: floreados, intangíveis, meras simulações de algo que apenas existe em papel… Como reagimos, então, no sossego das nossas cadeiras ao amor genuíno entre uma avó e a sua neta? Ali se mostra e fala da solidão ou da perda revelando, quase inocentemente, o modo como isso se reflete (ou pode refletir) nas nossas vidas. A casa da avó é um espaço fechado mas, ao mesmo tempo, aberto para o mundo e para as memórias do que já passou e do que está por vir. É uma experiência humana e que humaniza, que desafia o “maquinal” da técnica da sétima arte para a colocar ao serviço do que move a ação, para, a passos largos, nos intrometer no silêncio, na ausência e na riqueza de um espaço e de uma partilha familiar.

Quando damos por nós já “entrámos” no filme: é como estar sentado/a na cama ao lado da avó, ou fitar o que é filmado ao lado de Margarida. Nós também fazemos parte do filme. Somos testemunhas, somos guardadores das memórias vividas e reveladas entre a avó e a neta. De repente, deixamos de ser espectadores para sermos crianças outra vez. Para termos medo do escuro, da mudança, da solidão, da perda. Para termos medo de não nos lembrarmos da voz ou dos trejeitos de alguém que amamos tanto. Ao “invadirmos” a privacidade de Margarida e da avó, também somos invadidos pela certeza e pela lembrança de que há um pouco – ou muito – de cada um de nós naquele retrato. E a memória de Margarida pode ser, intencionalmente ou não, também a nossa.

Com @Última Sessão: fb.com/ultimasessao.cinema

Sara Quelhas*

*Mestre em Estudos Fílmicos e da Imagem pela Universidade de Coimbra

Sobre o autor

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