Arquivo

Germinal

1. Permanece a confusão sobre quem se apresenta às urnas na Guarda nas próximas autárquicas. Sobretudo dos lados do PSD. Não é por nada, mas a haver um dilema, ele é puramente táctico. Isto é, se avança Virgílio Bento, chega-se logo à frente algum dos tubarões/dinossáurios disponíveis, pensando que são favas contadas. Se Bento não avança, indo os ovos para o mesmo cesto, então já é possível um candidato underdog, etc. e tal. Este jogo de espelhos fala por si. Ninguém no PSD está realmente interessado em avançar com um projecto mobilizador para a cidade. O enfoque vai simplesmente contra quem vai concorrer em Outubro. Ou seja, se há um ou dois cestos para os ovos socialistas. Muito pouco, na verdade. Esperava-se mais. Esperava-se uma oposição já em campo e não focada unicamente para a campanha eleitoral. Onde ninguém presta atenção a nada, porque tudo está praticamente decidido. Até lá, e porque os tempos são de aperto, os cidadãos, em vez do cálculo, valorizam cada vez mais a proximidade, o afecto. Porque, cada vez mais, é nos “pormenores” que se ganham e perdem eleições. É certo que a qualidade dos políticos locais tem vindo a decrescer. Muitos reduziram-se a sobas paroquiais, em cuja órbita de influência distribuem empreitadas, empregos, contratos, influências, jantaradas e mariscadas. Rodeiam-se sempre de medíocres e ambiciosos, não vá o diabo tecê-las. São tenebrosos, parasitários e ineficientes. Todavia, sucede que esperava algo mais do ambiente político local, atendendo à conjuntura nacional, a uma incipiente renovação dos quadros políticos locais e, sobretudo, da proximidade do acto eleitoral. Esperava, por exemplo, um amplo consenso sobre uma estratégia de criação de uma imagem da cidade, centrada na competitividade e numa apresentação agressiva. Esperava, por exemplo, a afirmação inequívoca da saúde, do desporto e do turismo como vértices estratégicos fundamentais para o futuro da cidade. Sendo que a cultura, porque já está presente nesses vectores, não tem que se afirmar autonomamente. Mas, até agora, não vi ainda quaisquer sinais nesse sentido. Para lá daquilo que se sabe e conhece. Ou seja, continuam as trapalhadas deste executivo camarário e ninguém parece interessado numa oposição permanente e atenta. A cidade está entregue aos seus fantasmas…

2. Aquele amanhecer foi mesmo penoso. De bom, só havia a reconfortante vaga canora dos pássaros. O ruído de fundo da eternidade. Podia ser. Essa de que o tempo é a imagem móvel. Poesia pura, o melhor de Platão. Mas pronto, devia andar sempre com um bloco de notas directamente ligado às impressões sem data. Ao fulgor de certas paisagens que nunca existiram, porque demasiado reais. Todavia, estão ali, com uma luz impossível, ao alcance de uma lágrima, de uma pequena obscuridade lançada pelo desejo. Mas acontece que essa rudimentar tecnologia poética só aparece na medida em que nada se espere dela, pois nada garante. A não ser, talvez, o sobressalto de não saber o que se pode deixar para trás. Pela frente, vagueio ainda dentro de um quadro de Brueghel. Pode ser aquele do moinho no alto. Habitado por um anjo com mãos calejadas e coração puro. Que olha para o palco terreno com o desprendimento de quem o alimenta de pão. Pés no chão… salta, salta! Pés no chão… salta, salta! Pés no chão… salta, salta! Camponeses, bufarinheiros, algozes e hereges, instalados no quadro como numa ordem celeste que ninguém questiona. Contemplando a face de Deus na sua irredutível inocência…

3. Há dias, no seu (imperdível) programa “No reservations”, um roteiro gastronómico muito pessoal e globalizado, Anthony Bourdain esteve na República Dominicana. Como se sabe, o destino preferido dos tótós que contraíram crédito pessoal para irem de férias. Ora, como seria de esperar, às tantas, Bourdain, com o típico ar cool muito apropriado a Greenwich Village, aparece numa praia daquelas de postal, a degustar umas lagostas com um local. O qual comenta, confrontado com a presença de umas moscas irritantes, que naquele país é habito dizer-se que, se as moscas aparecem é porque o marisco é fresco. Ao que Bourdain contrapõe que, em Nova Iorque, quando aparecem as moscas, é porque a morreu a velhota do apartamento ao lado. Pois é. A tragédia da nossa condição contemporânea passa por este desamparo. Ao qual somos miseravelmente indiferentes. Excepto as Finanças, é claro. Uma tragédia a que nem um humor negro que repõe o humano consegue disfarçar.

Por: António Godinho Gil

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Leave a Reply