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Gavotte – 2

(Recensão, em 4 partes, de “As Benevolentes”, de Jonathan Littell (D. Quixote, 2007).

A epopeia de Maximilien Aue poderia ter acabado quando decidiu ir passar a sua licença à mansão desabitada da sua irmã e marido, um aristocrata prussiano, compositor musical e inválido, na Pomerânia. Precisamente numa altura em que a chegada das tropas russas era só uma questão de dias. A descrição da sua estadia constitui um dos momentos mais intensos e brilhantes da obra. Uma espécie de viagem desesperada no interior das suas fantasias eróticas e obsessões sentimentais, um estertor orgástico que prenunciava o fim, um suicídio “por indiferença”, já que, nesta altura, a morte era irrelevante para o narrador. Mas a história resolveu ainda puxá-lo para si, pela última vez. Pela mão de Thomas, que o foi resgatar do seu inferno privado. Para assistir à demência final, ao Apocalipse. E para dar uma dentada no nariz “pouco ariano” do Führer, quando este o condecorava, no seu Bunker. Um episódio marcadamente surrealista, num dos momentos mais surpreendentes do livro. No momento em que escreve as suas memórias, Aue é um pacato gerente de uma fábrica de rendas, em França. Cuja ambição maior é a nada se inclinar, senão a inclinar-se a nada. Que suporta. “sem repulsa”, os seus deveres conjugais. Que tem pesadelos inexplicáveis, mas sem uma sombra de sentimento de culpa dentro de si. A sua única virtude é não julgar ou negar o que foi nem apelar ao julgamento do leitor. Precisamente a qualidade que nos expôs a sua tragédia sem nome, onde só os sonhos o traíram. Mas sem deixar de insinuar algo que, subtilmente, vai incomodando o leitor: “a máquina do Estado é feita do mesmo aglomerado de areia friável de que é feito aquilo que tritura, grão a grão. Existe porque toda a gente aprova a sua existência, até mesmo, e muitas vezes, até ao último minuto, as suas vítimas.” Essa perturbação resulta do facto de, sem que ele nada esconda, mesmo o peso moral do acto de matar, o leitor pressentir como seria escandalosamente fácil ser o que ele foi. Existe um momento no livro particularmente significativo. Após retomar as suas funções em Berlim, Aue é destacado pelo Reichführer Himmler para elaborar um relatório acerca das condições dos detidos nos K.L. (campos de concentração) na Polónia, com vista ao seu aproveitamento como mão-de-obra industrial. De visita a Birkenau, trocou umas impressões com um médico que aí prestava serviço, acerca da brutalidade dos guardas para com os detidos. Questionado, diz o oficial: “Uma solução fácil seria a de acusarmos a nossa propaganda, quando ensina que o Häftling (preso) é um sub-homem, não chega sequer a ser humano, é portanto legítimo bater-lhe. Mas não é bem assim: afinal de contas, os animais também não são humanos, mas nenhum dos nossos guardas trataria um animal da mesma maneira que trata os Häftlinge. A propaganda desempenha de facto o seu papel, mas em termos muito mais complexos. Cheguei à conclusão de que o guarda SS não se torna violento ou sádico por pensar que o detido não é um ser humano; pelo contrário, a raiva dele aumenta e transforma-se em sadismo quando se dá conta de que o detido, longe de ser um sub-homem como lhe ensinaram, é justamente, bem vistas as coisas, um homem, como ele no fundo, e é esta resistência, não sei se está a ver, que o guarda experimenta como insuportável, esta resistência muda do outro; portanto, o guarda, quando espanca o detido, está a tentar fazer desaparecer essa humanidade que é comum aos dois. Bem entendido, a coisa não funciona: quanto mais o guarda bate, mais obrigado é a comprovar que o detido se recusa a reconhecer-se como não-humano.” Esta relação ambígua entre a vítima e o carrasco é largamente desenvolvida por Arno Gruen, no seu livro “A Loucura da Normalidade” (Assírio & Alvim, 1995). A certa altura, com base num relato de um jornalista, refere a história de um soldado alemão que, após ter recebido ordens para matar um soldado russo acabado de capturar, não o conseguiu fazer, ao perceber que “não era um inimigo abstracto qualquer, mas uma pessoa que, tanto como ele, sentia medo e desespero.” Conforme é relatado por Aue, Himmler proferiu um célebre discurso, numa reunião alargada dos quadros do regime e dirigentes da SS, em Poznan, em Outubro de 1943. O objectivo dessa comunicação, de uma crueza suprema, pois nada escondeu em relação à Endlösung (solução final) em marcha, foi correctamente entendido pelo narrador: implicar o auditório nessa responsabilidade, estendê-la a todo o regime, comprometer os presentes com um conhecimento de que não se poderiam mais tarde descartar. O Reichführer nem se preocupou em camuflar a mistificação em que por vezes caiem os instigadores do assassínio de massas: “A maior parte de vocês deve saber o que isso representa, quando jazem juntos cem cadáveres, quando jazem aí quinhentos ou mil cadáveres. Ter passado por tudo isso e ter-se conservado uma pessoa decente – tirando algumas fraquezas humanas – isso é que nos tornou duros.” (op. cit, p. 58).

Por: António Godinho

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