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Fumo mágico – a propósito de uma tradição na Anta da Pêra do Moço

Nos Cantos do Património

Na semana anterior o Vítor Pereira escreveu nesta coluna sobre os construtores de antas, nomeadamente sobre o monumento mais conhecido da Guarda – o dólmen da Pêra do Moço, localizado junto à estrada Pinhel/Guarda. Durante longo tempo o dólmen permaneceu como espaço sagrado, ligado a rituais ancestrais relacionados com a fertilidade e com as boas colheitas.

Quando a “Sociedade de Geographia de Lisboa” organizou a expedição “Scientifica” à Serra da Estrela, no final do século XIX, Francisco Martins Sarmento ficou encarregue de recolher e sistematizar o maior número possível de informações “arqueológicas” sobre a Serra da Estrela e de toda a Beira Interior. No Relatório da “secção archeológica”, publicado em 1883, foram referidos os diversos vestígios arqueológicos da Guarda – o Castro do Tintinolho, o Castro de Valhelhas, os vestígios da Aldeia do Bispo, a Anta da Pêra do Moço, também conhecida como do Carvalhal, entre outros. Sobre este último monumento o cientista documentou uma curiosa tradição que remete para antigos cultos e rituais de origem pagã.

Lê-se no relatório de Martins Sarmento: “Quanto a tradições ligadas a estes monumentos, em Cannas de Senhorim, segundo o sr. Pinho Leal, era costume queimarem-se os dizimos sobre as antas d’esta localidade: na anta de Carvalhal de Gouveias (sic), como nos assegura o sr. Luiz Augusto Rebello da Silva, medico-cirurgico em Pinhel, succedia a mesma cousa, com a particularidade de se tirar da direcção do fumo, conforme elle se inclinava para a direita ou para a esquerda, o prognostico sobre a abundancia ou carestia do anno.”

Sobre esta tradição dizia ainda o ilustre viajante que “o agouro tirado da direcção do fumo, é conhecido em Basto. Ahi, quando alguém morre, queima-se-lhe a palha do enxergão. Se o fumo sobe direito para o ar, a alma do defunto foi para o céu; se inclina para a esquerda, foi para o inferno; se para a direita, para o purgatório. A mesma superstição existe na Ponte da Barca”.

Estas tradições fazem lembrar rituais religiosos ancestrais que se perpetuaram desde tempos pré-romanos, alguns deles relacionados com a queima das vísceras dos animais sacrificados para lisonjear os deuses. Mas outros rituais pagãos relacionavam-se especificamente com a interpretação dos presságios tendo em conta a direcção do fumo.

Não faltam exemplos da perpetuação de rituais pagãos ancestrais repetidamente proibidos pela Igreja. Ainda em pleno século XI, mais precisamente em 1066, o concílio realizado em Santiago de Compostela condenava o culto das pedras e, mais especificamente, o culto às pias e às covinhas. Não sabemos se o texto do concílio se referia às pias escavadas na rocha onde, na época romana e pré-romana, se realizavam cerimónias de sacrifício de animais. Pias e covinhas estão registadas em diversos povoados ocupados na Idade do Bronze e na Idade do Ferro, muitos deles associados aos Lusitanos, como vimos em textos anteriores.

Outras tradições que nos fazem lembrar antigos ritos pagãos foram registadas por etnólogos como Veiga de Oliveira. Escrevia este autor que pelo São João, em certas regiões portuguesas como a Beira Alta, havia a tradição de se queimarem gatos vivos dentro de panelas. Este costume bizarro, documentado na Beira Alta em épocas muito recentes, parece ser uma reminiscência dos sacrifícios de animais documentados desde a Idade do Ferro.

Por: Manuel Sabino Perestrelo

* perestrelo10@mail.pt

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