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«Apesar de anarca, isso não quer dizer que seja anti-autoritário. Pelo contrário, sou carente de autoridade, embora não crente na autoridade» Ernst Junger, “Eumeswil”

Jünger é um escritor ideologicamente ambíguo: arauto da “revolução conservadora”, para uns, “anarquista conservador”, segundo outros. Eumeswil (1977) é um livro singular, no qual cita abundantemente Stirner, Rousseau, ou mesmo Bakunine. A obra poderá passar por uma crítica do anarquismo e por se diferenciar dos anarquistas. Porém, embora Junger mostre por eles um evidente fascínio, apelida-se a si próprio de “anarca”. O termo aparece como um neologismo criado por si. O romance pode-se incluir no quadro dos escritos utópicos, ao lado de George Orwell, Aldous Huxley, ou Philip K. Dick, quando descrevem com alguma antecipação as sociedades totalitárias emergentes. Aqui, o Estado universal está consumado, embora constituído por um arquipélago de pequenos estados. Eumeswil é um deles, dirigido por um ditador, o Condor. Este despreza os bravos democratas de Eumeswil, as suas reuniões que crê secretas, as suas guerrilhas inconsequentes. Martin, aliás Manuelo Venator, é o narrador. Trata-se de um jovem historiador e académico, que trabalha todas as noites como barman na Casbah, centro do poder. É assim contemplador privilegiado dos poderosos, únicos admitidos na “zona interdita”. Observa os laços subtis e ambíguos que rodeiam o déspota, onde o fascínio, a amizade e o medo se revezam. Ele próprio desdenha os amigos do povo, os opositores: é o homem do segundo plano, da hibernação, do retorno às florestas, que se diz não anarquista, mais “anarca” – o anarquista está para o anarca, segundo o autor, como o monárquico está para o monarca. Martin é um outsider que não se compromete com a esquerda ou com a direita, e que decidiu obedecer unicamente ao seu próprio julgamento. Usar a astúcia com os que o rodeiam e com o poder. Agir de acordo com uma ética inteiramente pessoal, na qual a lealdade a Condor tem o seu lugar. Eumeswil é, pois, uma reflexão sobre o poder e a atitude que o indivíduo deve assumir face ao que Rousseau designava de Estados devoradores. Stirner, filósofo do séc. XIX é autor do incontornável “O único e a sua propriedade” (1845). É talvez o filósofo novecentista mais citado de sempre, embora de forma não assumida. Nietzsche foi beber muitas das suas ideias e Dostoievski, em “Os Possessos”, cria uma réplica literária das suas teses. Em “Eumeswil”, o narrador apresenta o autor de “O Único…”, as suas relações com os “Freien” – os “homens livres”, um grupo de amigos que Stirner frequentava em Berlim – resumindo a sua doutrina a duas teses: “1. Isto não é nada comigo; 2. Nada é mais importante do que eu”. Ou seja, o que Junger reteve de Stirner. Todavia, é preciso compreender melhor o que, à primeira vista, parece monstruoso. O Único, tal como descrito pelo filósofo, é um egoísta em acção. O vigor é um termo empregue por Stirner para designar o tipo de acção que conduz aos outros, com os outros e até contra os outros, mas jamais pelos outros. O único age sempre para si, em função do que julga ser-lhe favorável nesse momento.

A frase que encabeça este texto enuncia, de modo particularmente feliz, as várias posições que se podem adoptar face ao poder. Para um anarca, a autoridade não é sinónimo de poder, mas a sua manifestação natural. Porém, pode a autoridade emanar, não do poder, mas de uma realidade de outra natureza. É por lhe reconhecer a origem e a função que o anarca olha para a autoridade e vê nela uma necessidade descartável. Um produto destilado a meias entre a razão e o instinto. Mesmo quando o combate, não questiona jamais a sua utilidade. Pode até mesmo tirar partido dela. Porque o anarca nunca perde de vista o poço do tempo, movendo-se como um saltimbanco através das suas perplexidades. Um anarquista, pelo contrário, só com dificuldade diferencia o poder e a autoridade. É tudo uma maldição que urge abolir. Uma ficção que, para o bem da Humanidade, se torna necessário apagar. Mas a sua crença esgota-se nas margens do seu programa. O anarquista é um homem de acção. Sobre isso não há dúvidas. Mas todavia incapaz de agir para além das torrentes que alimentou. A utopia, para o anarca, está no terreno que absorve os seus passos de homem livre. Para o anarquista é uma simples distracção para dar lugar à fantasia. Mas é conveniente alargar o comentário às regiões convencionais do espectro político. Comecemos pelos conservadores. Estejam eles à esquerda ou à direita. Em comum, tomam a conquista e o exercício do poder como tema dominante da acção política. Mas há algo fundamental que os distingue: a atitude. Ou seja, para um conservador de direita, o poder é o seu território natural. Porque aí pode dar uso à autoridade como sua vocação indefectível. Não tem interesse em modificar a estrutura e a legitimidade do poder. Sabendo que o tempo corre a seu favor. Ao invés, para um conservador de esquerda, o poder só é maligno se outros o ocuparem. E a autoridade só é demonizada se não estiver em “boas mãos”. Se por acaso chegar ao poder por via revolucionária, utiliza a autoridade como uma faca afiada contra o tempo, embora quase sempre em nome do futuro. Uma trituradora implacável, impessoal, que destrói sobretudo aqueles em cujo nome se funda o seu programa. Se, pelo contrário, a via de acesso for a alteridade democrática, usa o poder como um bazar de influências, jogos florentinos, vantagens avulsas. O seu programa político, embora ambicioso e socialmente aceitável, acaba por minguar assustadoramente, depondo as armas aos pés da real politik. O mesmo é dizer, da conservação do poder a qualquer custo. Pois fora da redoma da autoridade, paira sobre ele o fantasma da insignificância.

Por: António Godinho Gil

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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