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Fructidor

1. As fórmulas científicas têm uma característica que as torna diferentes de todas as outras: a certeza de determinada causa produzir sempre determinado efeito. Por isso, estender esta universalidade e esta constância às ciências humanas, resvala numa imprudência fatal. No limite, alargá-la à experiência subjectiva dos sujeitos, entra já no domínio da ficção. Mesmo assim, nada impede que, nesse âmbito, se registem propensões, se enumerem tendências. Até porque, naturalmente, o espírito agrupa, relaciona, depura, conferindo um sentido onde aparentemente ele não existe. Ou retirando-o de onde não faz falta, através da poesia. Seja como for, de entre os inúmeros frutos dessa experiência recolhida e avaliada, quero destacar apenas um. Trata-se de algo que muitos de nós já viveram. Refiro-me à relação inversamente proporcional entre a acção orientada para a verdade do que somos e a dimensão da esfera da sociabilidade à nossa volta. Ou seja, quanto maior é a nossa deslocação ao encontro da nossa inescapável realidade, maior a rarefacção das amizades e afins. Na medida em que, qualquer regra, mesmo empírica, não dispensa uma demonstração, aqui vai, por etapas,  recorrendo à experiência pessoal: a) Antes, costumava buscar o agrado do maior número possível de pessoas. Indo ao encontro de denominadores comuns, por mim intuídos, em certos temas que, podendo ser fracturantes, me permitia escolher, antecipadamente, o lado “certo” da barricada: na política, nas atitudes, nos gostos, nos hábitos, nos costumes. Resultado: um círculo alargado e ruidoso de amizades, conhecimentos, etc. b) Depois, graças à minha própria evolução, passei a restringir essa identificação onde ela efectivamente existia. Evitando forçá-la para comprar a aprovação e o consenso. Resultado: o círculo “emagreceu” substancialmente. c) De há cerca de 10 anos para cá, cumulativamente, passei a exprimir, publicamente e em privado, as minhas ideias próprias. Sem exclusão de temas,  ou receio de comprometer conveniências ou ideias feitas. Conclusão: as amizades minguaram drasticamente. Na verdade, movemo-nos quase sempre de acordo com interesses. Se os interesses de quem julgávamos próximos deixaram de coincidir com os nossos, tal sucede graças ao nosso movimento, ao emergir do que está certo, ao mérito dos desafios que lançamos em redor.  A nossa responsabilidade nasce e acaba aí. O interesse revelado pelos outros em estar mais ou menos perto é algo que só a eles diz respeito. Ou pelas circunstâncias a que eles próprios não podem escapar. Ou, mais frequentemente, porque muitos se movem exclusivamente por expectativas, benefícios ou a busca de um poder alucinado através de outros. E então, tudo não passa de uma comédia de enganos.  Em conclusão, mesmo que a caminhada para o que, em cada um de nós, faz sentido, possa desmobilizar muitos dos que integravam o nosso círculo social, existe neste processo alguma justiça poética. E o resultado inscreve-se no domínio da ecologia social e emocional.

2. O Ministério da Defesa contratou este ano cerca de 500 mil euros em assessorias a entidades externas, que incluem sobretudo serviços jurídicos e estudos económicos. A notícia não surpreende, pois este vício não é de agora. E não é só deste Governo nem do anterior. Torna-se é mais absurdo e aviltante numa época de contenção e aperto. O recurso a serviços paralelos, sem qualquer concurso e muito menos justificação, tem sido, ao longo da nossa democracia, um dos principais sorvedouros de recursos e gestão de clientelas. Para a advocacia de negócios, a palavra crise é desconhecida e os amigos nunca hão-de faltar nos sítios certos. Precisamente os mesmos que hoje dão a mãozinha, estarão amanhã a entendê-la…

3. Há 40/50 anos, em Agosto/Setembro, ia-se a banhos. Alugava-se uma casa familiar. Faziam-se amigos durante a “villeggiatura”. Estendia-se o tempo com a placidez exigida pela temporada. Depois, durante cerca de 30 anos, o ócio democratizou-se. As praias encheram-se. O litoral foi ocupado. A oferta diversificou-se. Mesmo assim, o tempo das férias era lembrado só no regresso. Através das fotografias ou dos filmes partilhados com a família ou os amigos. Ou de uns relatos mais excitantes, temperados pela fantasia, à roda da mesa. Ninguém mais precisava saber se estava muito sol, a espessura da areia, o estado do mar, a frescura da brisa da montanha, a quantidade de monumentos visitados, os repastos deglutidos ou cervejas apascentadas. Mas o que é bom não dura sempre. De há 10 anos para cá, com o aparecimento das redes sociais, tudo isso mudou. Hoje ninguém descansa enquanto não anuncia, no Facebook, em tempo real, o seu roteiro de viagem. Crendo que isso poderá ser de interesse vital para a comunidade. Bem sei que, por detrás desta repartição do prazer, poderá estar simplesmente um vago remorso, ou uma secreta afectação. A coisa podia ser só bocejante. Ou motivo de consternação. Mas não seria ela perfeitamente dispensável?…

Por: António Godinho Gil

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