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Frimário

1. Este é o ano do centenário dela. Da instalação dela. Das réplicas dela. Da utopia possível com busto generoso e bigode mustafálico que nela irrompeu. Mas sejamos claros. No pasó nada: uns tirinhos, uns pirolitos, umas proclamações a piscar o olho à eternidade fixa (já que a móvel nada mais é do que o tempo, Platão dixit), umas reformas, como agora se diria, fracturantes, uma participação cívica nunca vista, uma janela para a brutalidade do despontar do séc. XX – a Grande Guerra -, o florescer da modernidade nas artes e nas letras, a nova filosofia portuguesa, a proliferação de jornais e revistas, a laicidade (menos como princípio de organização do estado, e mais como método intimidatório, cego e contra natura), a hipocrisia do sufrágio censitário, os “adesivos” e os “sempre em pé” que fizeram carreira, a tropa, esse viveiro de golpismos, ora sossegada ora desejosa de intervir, a instrução para todos, Egas Moniz, o ensino técnico, a razão possível na míngua de pão e de futuro, quando todos ralham e ninguém cede, Sidónio, o mais carismático, Costa, o animal político, Teófilo, o sonhador, Couceiro, o D. Quixote, os Governos a entrar e a sair em sistema de cama quente, a erupção social e cultural da mulher, o apocalipse  frenético de 100 anos de liberalismo, pois que o respeitinho muito lindo veio a seguir. Eis a República!…

2. Há dias, passou na SIC uma peça jornalística emblemática. Como pano de fundo, viam-se os pouquíssimos manifestantes anti cimeira NATO, reunidos em volta da estátua do Marquês de Pombal. Com muitas bandeiras vermelhas para “encher” o olho e devidamente pastoreados pelos “camaradas responsáveis”, ali destacados para a “acção”. Em primeiro plano, a entrevista do porta-voz dessas “massas”. Tratava-se de um antiquíssimo “jovem”, com aquele visual algures entre o realismo socialista, um fantasma acabado de sair da Sierra Maestra e a ressaca de uma Festa  do Avante. Estão a ver o género? E que, em vez de perdigotos, lançava no ar os “amplos” sectores ali “representados”: organizações  de “jovens”, “mulheres”, muitos “trabalhadores”, é claro. Protestando, “democraticamente”, contra a presença da NATO. Note-se, essa organização “criminosa”, que teve o desplante de garantir 65 anos de paz na Europa!… Questionado se era uma manifestação de esquerda, negou, avançando para a faixa 2: qualquer coisa como “que ideia! Como podem ver, para além da amplitude da representação, esta é aberta a todos os que…”, etc. Mais à frente, foi-lhe perguntado se a acção de “protesto” era apoiada por partidos políticos e quais. Embora relutante, lá os nomeou. Pois bem, dou um rebuçado se adivinharem. Pronto, estava difícil! Vão-me obrigar a dizer, seus malandrotes: o PCP e os satélites de sempre! E também, ora deixa cá ver, o partido Humanista! O BE era claramente um intruso tolerado, como se adivinharia pela indumentária pouco sofisticada do personagem, pela notória escassez vocabular e, sobretudo, pela ideia que fez passar de que “algumas forças se colaram”, sem contudo as nomear. Sobra uma conclusão e um desabafo. Primeiro, a conclusão: o mundo virou quase 180º nos últimos 25 anos. Os messianismos foram chumbados irremediavelmente pela realidade. As justificações para a estupidez são cada vez menos toleradas. O comunismo tornou-se uma obsolescência histórica. Só uma coisa permaneceu: os métodos desta gente. Agora o desabafo: apesar de tudo, prefiro mil vezes os manifestantes performativos. Pois esses, ao menos, revelam alguma compreensão do que implica a contemporaneidade.

3. De acordo com outra notícia da SIC, durante o fim-de-semana, as lojas da Baixa de Lisboa estiveram a proteger as suas montras, devido aos protestos anti-NATO. Cabe perguntar: serão estes os “pacifistas” de que o Bloco tanto gosta? Aposto que a sua porta-voz televisiva mais qualificada, a ciclotímica barbie Joana, não vai conseguir dormir por estes dias. Sabem porquê? Os sonhos lúbricos vão-se suceder, como uma vertigem. Povoam-nos jovens audazes, barbudos, mascarados, de pau na mão, vestidos de preto com roupa desenhada por costureiros da causa. Ou seja, argonautas intrépidos, e-trogloditas, neo-luditas e por aí adiante… Nada de quasímodos tropicais com sabor a charuto! Que ideia! Trata-se de tribos criadas no seio do bem-estar, que tresandam a ócio, mobilizadas para a violência pura e dura. Todavia caucionada pela esquerda do costume como “acção de protesto”. E que ninguém toque no assunto! Os mesmos que, em vez de entrarem na pastelaria, gritando bem alto que o leite está azedo, seguindo a sugestão de Cesariny, preferem partir a montra sem aviso. E assim estragar a vida de quem verdadeiramente luta e trabalha. Ou de quem gosta simplesmente de um pastel de nata bem quentinho…

Por: António Godinho Gil

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