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Frequência Modulada

Diz-se por cá que, “Em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”.

Caminhamos pois para uma sociedade de esfomeados ralhadores, coisa que me parece uma espécie de bando de gralhas sem milho, à deriva, enchendo a barriga de ralhadelas e mal-dizeres. Vai ser bonito viver nessa sociedade.

Este esqueleto com que me passeio diariamente deve ser visto pelos críticos como falta de comida na mesa. Até a minha mulher me lembra disso quando me vê abusar de alimentos fora de casa e ironicamente me diz… “tu… numa casa farta deitavas o dobro”! Nestas alturas olho-a de soslaio, sorrio e digo “se quisesses um porco bem cevado davas-me menos trabalho e mais temperos”.

Mas hoje… hoje não quero ser crítico. Quero falar bem do que é bom.

Falemos das nossas rádios locais e de música…

Rui Veloso é como as cerejas, só que tem dois pés!

Canta músicas como quem as vive, a letra é sempre algo do quotidiano de alguém. Por vezes pueril como em Prometido é Devido, outras vezes apaixonada como em Primeiro Beijo, outras vezes de uma realidade enternecedora e impensada como em Os Loucos de Lisboa.

Ligo o rádio do carro diariamente à procura não sei de quê… nunca soube, apenas sei que procuro abstrair-me dos traços habituais da estrada que me levam ao trabalho, acabar com aquela réstia de sonolência que o marasmo do trânsito paradoxalmente me acrescenta. No carro da frente, no de trás, nos que cruzam, viajam histórias de vida, vejo mulheres que retocam lábios e olhos, vejo gente que fala sozinha, vejo garotos ranhosos, outros alinhados…

Todos os dias as histórias dos outros apagam as minhas e entro naquele estado em que o cérebro começa a escrever as histórias alheias, a inventar realidades que são apenas aparências, é nesse momento que ligo o rádio do carro, sempre numa das estações locais e às vezes acontece… passar Rui Veloso!…

Passam retalhos de vida cantados que me projetam para um mundo singular, mais real do que o que me passa ao lado nos carros apressados. O Homem canta as coisas que são as nossas coisas, pedaços das nossas vidas. Os putos ranhosos e despenteados no carro da frente virados para trás a fazer caretas, ou a cabeça levantada da mulher que retoca os lábios são a imagem da canção no canal FM…. Oiço o Rui incorporar a voz do marido que conduz o tal carro à minha frente… pinta os lábios ao espelho… hoje é dia de passeio e enquanto eu me barbeio passa um pente no rapaz. É esta métrica da vida em frequência modulada que me faz acordar todos os dias.

É assim que compreendo que o mundo é uma bola que rebola e em cada volta as histórias se repetem, somos uma espécie de cópias de carbono uns dos outros, com as mesmas virtudes e defeitos alternantes, dependendo da musica que ouvimos. A vida repete-se em cada esquina, em cada rua, em cada terra, em cada rádio.

No fundo somos todos iguais! Cadeias de péptidos enrolados que se emocionam com música.

Boa semana.

Por: Júlio Salvador

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