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Florial

1. A fuga tem duas predestinações mais ou menos aceites pelo imaginário popular: a evasão penitenciária e o itinerário da consumação plena de alguma paixão fulgurante, que não espera pela aprovação das circunstâncias onde nasceu. Ambas são depositárias da rêverie romântica, ao jeito de Dumas, ou Camilo, respectivamente. No entanto, só a segunda encerra o núcleo essencial do amor trovadoresco. Ou seja, a representação do amor tal como o Ocidente o conhece, nascida algures na Provença do séc. XII. O maior problema destas movimentações, antes feitas a cavalo e hoje perfeitamente motorizadas, é que ninguém fala do local de chegada. Nada se sabe do que aconteceu “depois”. Ou seja: o normal é dizer-se: “fulano e sicrana (ou fulano e sicrano, ou sicrana e fulana, sim, é melhor ampliar as variáveis politicamente correctas, não vão as associações “do sector” cair-me em cima) fugiram os dois anteontem, abandonando tudo”. Descontado o pleonasmo da última parte, raramente o local de chegada, ou o desenvolvimento da história romanesca, são tema de conversa, ou mesmo objecto de curiosidade. Porque será? Pudor? Seria bom demais. Desinteresse? A proliferação de romantismo de cordel e das revistas cor de rosa desmentem a hipótese. A minha aposta vai para outra possibilidade, aparentemente menos óbvia: o mito do “foram felizes para sempre” impõe aqui a sua cortina de silêncio cúmplice. É que, se a fuga denota arrojo, também comporta um risco. E quem se arrisca não o faz sem uma determinação acima do cálculo e à margem da decepção. E não é menos verdade que o heurístico “happy end” é a homenagem possível que a resignação videirinha dedica à grandeza. Ou que uma curiosidade indisciplinada consagra ao que já pertence a uma ficção demasiado próxima da realidade.  Portanto, para todos os efeitos, “viveram felizes para sempre”. Porquê? Don’t ask, don’t tell! Caso encerrado…

2. Sendo “normal” a vitória de Cavaco Silva nas presidenciais de Dezembro, sem dúvida que Fernando Nobre foi o seu grande protagonista. Pelo capital de esperança que reuniu, pela extraordinária mobilização alcançada, pelo score, por ter “secado” o candidato oficial da esquerda. Mas também pela sensação que ficou a pairar de que a luta iria continuar. Luta em prol de novas formas de intervenção política, para lá dos partidos. Luta pela colocação da solidariedade e da coesão social como motivos centrais na política. Luta para que a cidadania fosse encarada não só como participação passiva, também como uma espécie de direito natural, irredutível, pessoal e exequível por si próprio. A extraordinária novela Michael Kohlhaas, de Heinrich von Kleist (1777-1811), ilustra perfeitamente esta última ideia. Todavia, ao aceitar o convite do PSD para cabeça de lista em Lisboa, eis que FN sucumbiu às armadilhas de um sistema que ele tanto criticou. E se o gesto foi um erro colossal, a forma como o tem gerido é absolutamente trágica, cavando para si uma capitis diminutio sem remédio e sem glória. Por várias razões: 1º nunca explicou devidamente aos seus apoiantes a sua inflexão. Ao ter encorajado, no pós eleições, a criação de uma rede informal de cidadania,  revelou, ao invés, surpreendentes tiques autistas e um enorme desprezo por quem nele acreditou; 2º Ao envolver-se na vida partidária, hipotecou, de forma inexorável, as hipóteses de sair vencedor nas próximas eleições presidenciais, cuja preparação e “estágio de maturação” deveria ser a sua 1ª prioridade; 3º  Materializou-se um receio que já havia pressentido durante a campanha. Ou seja, detectei alguns tiques de culto da personalidade e de um messianismo próximo da irracionalidade de seita. Situações a que sou particularmente sensível e adverso. É certo que, em grande medida, a responsabilidade não foi de FN, mas da sua mensagem por vezes um pouco vácua, proselitista e, por isso, dada ao populismo. Que atraiu esse género de seguidismo quase religioso por uma boa parte dos apoiantes. O que não encaro de forma alguma com leviandade ou censura. A questão é que Nobre não soube estar à altura deste conjunto diversificado de enormes expectativas que muitos depositaram nele. Com esta sua recente deriva, levou a que quem continue a acreditar nele o faça por razões de fé e não como uma opção racional, livre e esclarecida. 4º A desastrosa declaração de que a sua eleição como deputado seria uma simples formalidade para ser nomeado como Presidente da AR. Descartando assim essa qualidade se não for eleito 2ª figura do Estado. Pior a emenda do que o soneto. E que revela várias coisas, igualmente preocupantes: passar por cima dos mecanismos de representação democrática e da sua génese; querer alcançar pela porta do cavalo o que não atingiu numa eleição; desconhecimento total da natureza do cargo que pretende assumir e dos consensos necessários para a designação; não ter em conta os anti-corpos que criou na classe política durante a campanha eleitoral; dar de barato que “os fins justificam os meios”, mas esquecendo-se de que, não havendo fins, a não ser a possível nomeação para um estéril cargo regimental, os meios se justificam a si próprios. Da pior maneira possível, como soe dizer-se. Espero bem que a causa da “vida política para além dos partidos” tenha, no futuro, líderes mais nobres.

Por: António Godinho Gil

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