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Figuras com estilo

observatório de ornitorrincos

Na passada semana, o clima político do país aqueceu como se o Protocolo de Quioto nunca tivesse sido aplicado. O CO2 que provocou o aumento da temperatura foi uma pequena declaração de Manuela Ferreira Leite sobre a suspensão da democracia durante seis meses. O PS saiu à rua a gritar “Fascismo nunca mais” e o PSD veio à janela atirar baldes de água fria para arrefecer o ambiente invocando ironia nas palavras da chefe.

Devo dizer que não fiquei chocado. Primeiro porque gosto particularmente de figuras estilísticas (repare, leitor, como uso de forma particularmente sábia e extremamente inteligente a alegoria no parágrafo inicial – e atenção à hipérbole jactante e à apóstrofe envergonhada já dentro destes parênteses, seguida de hipálage). Segundo porque aprecio muito quem anuncia assim de forma desabrida as suas reticências à democracia, um sistema onde os governos pouco mais podem fazer do que aumentar os impostos e convocar eleições umas atrás das outras. Em boa verdade, o que é que a democracia já nos trouxe? A imprensa livre, nada mais. O direito de reunião, é capaz, mas ficamos por aqui. Mandar para casa o primeiro-ministro, é possível. Os partidos políticos, no máximo. Os direitos das minorias, até posso concordar. E mais, caro leitor? E mais? A liberdade de expressão? Está bem, terá razão, mas não estou a ver mais nada.

E reparemos como a democracia não melhorou Portugal em nada. As pessoas vivem mais anos? Isso é porque trabalham menos e o país está no estado lastimável que se vê. As crianças morrem menos? Isso é porque deixaram de trabalhar, estão feitas umas criaturas inúteis. Agora vão todas à escola? Mas sabem muito menos do que antigamente. Podem saber todas ler e escrever, mas digam-me uma criança que conheça os afluentes do rio Tuela. E querem os defensores da democracia um país desenvolvido. Evoluído com um Magalhães debaixo do braço, mas sem conhecer o rio Baceiro e o rio de Guide? Não me parece.

O PS não acredita que Manuela Ferreira Leite tenha feito uso da figura da ironia. Não discuto. De ironia percebem os socialistas. O Governo, por exemplo, é o Eça de Queiroz do século XXI. Não há ninguém, no panorama literário português, que use a ironia como os ministros de José Sócrates. “A crise acabou”, “peço desculpa aos senhores professores” e “o Governo deseja uma comunicação social livre e isenta” são algumas das pérolas estilísticas dos homens e mulheres do Conselho de Ministros. Alguns dominam mesmo a difícil arte da sinédoque, quando anunciam que Portugal deseja a construção do novo aeroporto e da linha de TGV (neste caso tomando a todo pela parte, já que o substantivo “Portugal” refere-se, na realidade, aos portugueses, nomeadamente aqueles que são empreiteiros).

O PSD, pelo contrário, domina muito mal o uso das figuras de estilo. Se agora a líder falhou a ironia, durante o Verão foi muito criticada pelo uso excessivo da elipse, figura que designa a supressão de alguma palavras. Ferreira Leite omitia com frequência frases completas, razão pela qual se aconselha um prontuário para os lados da São Caetano à Lapa.

Para dizer a verdade, parece-me que o PSD tem escolhido várias figuras de estilo para presidir aos destinos do partido. Santana Lopes era a metalepse, que tomava o antecedente (Durão Barroso) pelo consequente. Marques Mendes, uma catacrese. Não descrevia com exatidão o que o partido queria expressar, mas foi adoptado por não haver outro apropriado. Luís Filipe Menezes foi um breve anacoluto, uma irregularidade na estutura. Manuela Ferreira Leite é obviamente uma metonímia. Está ali em substituição de outra coisa qualquer.

Por: Nuno Amaral Jerónimo

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