“Palavra e Utopia” (2000) permanece uma obra-chave na filmografia de Manoel de Oliveira na temática e no estilo. O filme propõe um olhar ancorado nas palavras e idades do padre António Vieira, encarnadas por três actores: Ricardo Trêpa, Luís Miguel Cintra, e Lima Duarte. Evitando o historicismo, a obra reflecte sobre o ser português e o ser para e no mundo, remetendo para a dimensão política do acto de tomar a palavra em público. Assim se manifesta uma relação tensa entre a definição do lugar e o horizonte da utopia, da palavra dita no presente e do futuro para o qual ela aponta.
Do jovem ao ancião, é o mesmo homem que prega e vive o que escreveu Paulo na “Carta aos Romanos” sobre o ser cristão, rejeitando a perspectiva moralista sobre a ascensão ao céu ou a descida ao abismo dos outros, e afirmando a necessidade de olhar para si mesmo: «É junto de ti que está a palavra: na tua boca e no teu coração» (10,8b). Vieira viveu muitos anos no Brasil colonizado, onde estudou e se tornou padre jesuíta e professor de retórica e teologia. A concordância entre o que ele dizia e pensava traduziu-se na defesa dos direitos e da dignidade dos indígenas, ainda que sem abandonar a demanda de os tornar cristãos. As suas três épocas de vida surgem através de diferentes formas de enquadramento e aprisionamento do seu discurso: dos espaços abertos e exteriores aos espaços confinados e interiores, passando pelos espaços liminares.
Palavra e Utopia começa com Vieira num tribunal inquisitorial, depois de uma breve introdução arborescente. Responde, entre outras coisas, pelo conceito de Quinto Império, uma crença redentora, um sonho imenso. Três séculos depois, Agostinho da Silva desenvolveu esta ideia de um império sem imperador nem imperialismo onde imperaria a liberdade dos povos. Uma comparação com outro filme realizado por Oliveira, “O Quinto Império – Ontem Como Hoje” (2004), mostra como a história é dada a ver no seu cinema, não como coisa morta, mas viva, aberta à interpretação e ligada à concepção e vivência do presente. Do Padre António Vieira ficaram as belas palavras. Pode parecer pouco, mas elas transportam consigo o sopro vivente daquele que as pronunciou, como estas do “Sermão da Sexagésima”: «Que cousa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para essa vista são necessários olhos, é necessário luz e é necessário espelho». “Palavra e Utopia” coloca Portugal ao espelho como se se tratasse de um ser humano, olhando para a sua história de potência colonial, subjugadora de povos, e abrindo espaço para que uma hipótese de futuro luza na actualidade.
Sérgio Dias Branco*
* Coordenador de Estudos Fílmicos e da Imagem (Mestrado em Estudos Artísticos) na Universidade de Coimbra
**O autor escreve de acordo com a antiga ortografia