Eu, que estou preso a este corpo inerte numa cama de hospital há anos; eu, que sofro de dores indescritíveis neste cancro que me consome e que nenhum medicamento alivia; eu, que não posso voar com o meu carro sobre um qualquer penhasco; eu, que não acredito que o poder de um qualquer deus inventado pelo homem me possa valer; eu, que não posso meter a boca sobre os canos de uma qualquer caçadeira; eu, que estou mais do que consciente e ciente de que o meu fim vai ser de uma dor atroz e sem qualquer esperança de recuperação; eu, que não tenho qualquer possibilidade de pôr termo à vida pelos meus próprios meios; eu, único e verdadeiro dono da minha vida, chamo todos os nomes àqueles que tendo o poder para me aliviar o sofrimento o não fizeram, invocando razões que não são as minhas.
Os egoísmos ou as objeções de consciência de uma ligeira maioria parlamentar não permitiram que se legislasse sobre o elementar direito de qualquer cidadão de ter uma morte digna.
Portugal foi pioneiro em muitos avanços civilizacionais, no entanto azuis, laranjas e vermelhos uniram-se para, cínica e sadicamente, negarem o direito aos seus cidadãos de poderem optar pela eutanásia.
Há sempre imenso ruído à volta de temas fraturantes como este e discussões apaixonadas sobre o direito inalienável à vida ou à morte dentro e fora do Parlamento, mas gostaria de ter visto o mesmo empenho, paixão e objeção de consciência nas bancadas parlamentares aquando da aprovação das medidas draconianas antes, durante e após a invasão da “troika”, as quais terão levado ao suicídio de centenas de cidadãos que tudo perderam e mataram outros por doenças devidas ao stress gerado pelas mesmas. Aí, não houve uma maioria cozinhada nos bastidores que permitisse a oposição em bloco contra esses atentados aos cidadãos; também não houve maioria cozinhada que se opusesse à reformulação da lei do aborto que, em tese e na prática, implica a supressão de vidas humanas sem que essas vidas sejam tidas nem achadas nesse processo. Esta cambada que ousou negar-me o direito a morrer condignamente, preocupa-se infinitamente menos com o meu direito a viver condignamente e por isso, juntamente com outros que agora votaram sim, ou à vez, aceitaram carregar-me de impostos, resgatando e nutrindo bancos eternamente falidos, aceitam que eu pague duas vezes pelo mesmo serviço de saúde, aceitam que eu me desunhe para poder dar um curso superior aos meus filhos, aceitam a degradação das condições de ensino nas escolas e do Serviço Nacional de Saúde, aceitam roubar nove anos de serviço a uma classe quando não o fizeram a outras classes do mesmo Estado, aceitam que tenhamos a eletricidade e os combustíveis mais caros, entre outros bens caros de primeira necessidade, mas também aceitam que tenhamos dos rendimento per capita mais baixos da Europa civilizada.
Esta questão da Eutanásia, removendo todo o fumo e ruído, é, para mim, claríssima: a aprovação de qualquer um dos quatro projetos, que me pareceram equilibrados, conscientes e impeditivos de atentados à vida de quem não estivesse no pleno uso das suas faculdades, ter-me-ia permitido optar pelo SIM ou pelo NÃO. Quero mesmo morrer ou não quero mesmo morrer? Mas pelo menos posso optar. Sou o dono desta minha vida e o Estado dá-me essa possibilidade, a mim que estou aqui a vegetar, tetraplégico há anos nesta cama de hospital com esta sonda gástrica e este tubo traqueostómico que me alimentam e ventilam artificialmente. Eu, que estou nesta dor infinita, longe de quem mais amo, provocando-lhes uma dor infinita também, quero morrer e posso pedir que mo façam de uma forma medicamente assistida e indolor, ou melhor, poderia. Mas, por agora, não posso, porque com a reprovação destes projetos-lei a única opção que me fica é o NÃO. Por isso, meus “queridos” deputados vermelhos, laranjas e azuis, espero que nunca passem por uma situação de vida em que sintam que “- oxalá tivesse votado sim”, são os votos amigos deste vosso inimigo ficcionado.
Por: José Carlos Lopes