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Estou pronta

Vidas

Uma visita a um lar é, por um lado um ato de amor, por outro, uma “obrigação”, daquelas que mexe com a nossa consciência. Nunca é uma coisa que nos deixe alegres, tranquilos e felizes por mais que amemos a pessoa que vamos ver.

Confesso que para mim é um sacrifício. O meu corpo e a minha cabeça não querem, mas o meu coração é mais forte nesta luta.

Odeio o cheiro. Tudo começa por aqui. A minha filha Mafalda (que é a da mania dos cheiros) diz que «cheira a velhos mãe!» Pois, pois cheira. É uma casa para velhos, tem que cheirar a velhos.

Entristecem-me aqueles corpos que se arrastam no último fio de vida.

O olhar perdido de quem já não admira coisa nenhuma, um olhar vidrado, meio esbugalhado, triste, até, de quem já se resignou e está à espera.

Mas o que mais odeio (pode parecer egoísmo, eu sei) são as memórias que herdo destas visitas – não queria!

A minha avó paterna está num lar. E o meu coração “obriga-me” a ir vê-la. Eu queria ficar com a recordação de uma avó forte e até um bocadinho arrogante. De uma avó pouco carinhosa quer nas palavras, quer nos atos (era o seu jeito), mas que contava histórias de nos levar às lágrimas. Do seu doce de abóbora, da nota que nos dava meio às escondidas, de como vinha vaidosa numa ida ao cabeleireiro e das “discussões” com o meu pai, achava o máximo ver o meu pai no papel de filho a levar um ralhete.

Agora vejo-a tão pequenina e ela não era.

Tão magra, porque diz que já nada lhe sabe, e ela não era.

Tão resignada, indefesa e perdida, ela que sempre foi tão altiva.

Tem um discurso incerto de quem tem 95 anos e as gavetas que guardavam as suas recordações foram todas remexidas, por isso se confunde nos acontecimentos, nas datas, nos nomes, nas coisas.

A minha avó está vestida de morte e esta imagem é muito dolorosa.

Quando venho embora sinto um nó no estômago, na garganta, no coração.

Ela despede-se: “Estou pronta”.

E está.

Por: Carla Freire

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