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Esquerda e descontentamento

Não creio que Manuel Alegre se disponha a abandonar o PS para se lançar, por sua conta e risco, numa espécie de frente ‘das esquerdas’, com epicentro no BE e diversos satélites ‘desalinhados’ circulando à sua volta. Menos ainda creio que se disponha a sair do PS para lançar um novo partido político, atrás da miragem do célebre milhão de votos das presidenciais – que jamais se repetiria nestas circunstâncias e para este fim. Ao contrário da maioria das análises, parece-me que, depois da sua intervenção no último Fórum da Esquerda, quem tem um problema imediato para resolver é Alegre e não Sócrates. E o problema é tão-só o da retirada com honra.

Sem Manuel Alegre, o PS do poder seria apenas uma irmandade de gente feliz e despreocupada. É verdade que alguns outros também, aqui e ali, atreveram-se a enviar sinais críticos em voz alta, mas quase todos só o fizeram depois de terem garantido uma retaguarda segura em Embaixadas ou administrações de empresas públicas ou de terem ganho para os seus escritórios de advogados alguns daqueles fantásticos negócios com o Estado que são um exemplo gritante da promiscuidade entre o público e o privado.

Manuel Alegre não é, por natureza, subornável. A liberdade é o seu vício e, sendo militante e deputado de um partido, a sua insanável angústia. Estará sempre pronto para cavalgar o descontentamento, para exigir mais que todos do seu próprio partido, para votar desalinhado. Mas, quando se trata de organizar o descontentamento, de pensar em alternativas de governo, ele fica paralisado – até porque a sua vocação e apetência não são essas. Foi relativamente fácil fazê-lo nas últimas presidenciais, onde o descontentamento flutuante da esquerda e não só pedia alguém mais do que as duas cartas do baralho já demasiadamente conhecidas que eram Soares e Cavaco. Coisa diferente é encarar a fatalidade de construir uma alternativa de poder para disputar ou atrapalhar o governo do país.

Francisco Louçã, que teve o ónus de criar de raiz uma alternativa de representação parlamentar no espaço do descontentamento e no espaço de algum eleitorado do PCP, já o percebeu. A menos que se queira envelhecer e definhar na posição de contrapoder eterno que é a dos comunistas, chega uma altura em que o discurso tem de se deixar de estafados chavões utópicos e partir do concreto dos problemas do país e das pessoas concretas para afirmar que existem soluções diferentes e independentes de uma cartilha ideológica.

O PCP, mesmo com a sua capacidade de mobilização de rua, pouco incomoda José Sócrates: basta-lhe ler na tribuna da Assembleia as teses do último Congresso comunista para Sócrates acreditar que os pode sacudir para canto sem quaisquer danos políticos. Inversamente, vendo como ele perde a cabeça com as interpelações de Louçã (que, ainda por cima, é o mais bem preparado dos deputados em muitos dossiês económicos e não só), percebe-se como o primeiro-ministro sente que as constantes arremetidas de Louçã não são nada inócuas. Felizmente, deve pensar José Sócrates, o Bloco de Esquerda não é nem quer ser alternativa de governo, nem chega eleitoralmente para ameaçar de forma consistente a maioria socialista. A menos que…

A menos que o BE encontre quem, à sua direita e com mais alguns ‘desalinhados’ e ‘descontentes’ de ocasião, possa fornecer a fachada de razoabilidade a partir da qual a ameaça pendente passa a perigo iminente. E é aí que entra Manuel Alegre e o fantasma do seu milhão de votos. A hipótese é de tal forma aliciante, que Louçã até já declarou que não se importava de diluir o nome e o núcleo do BE nessa outra frente eleitoral a criar. E, se a estes dois conjurados se juntasse também, por exemplo, Manuel Carvalho da Silva, aí tremeria o PS e tremeria o PCP.

Resta que este canto de sereia precisa de algum suporte ideológico e de alguma base programática de poder, além do descontentamento, que é coisa em que os portugueses sempre foram pródigos, sem que isso, todavia, se tenha traduzido em alternativas políticas sólidas – veja-se, por ordem cronológica, o otelismo, o pintasilguismo, o eanismo. Ora, o problema ideológico destas ‘esquerdas’, como eles gostam de dizer, é o problema jamais resolvido do Estado. Que papel deve ter o Estado num projecto de poder de uma esquerda que já tem vergonha de se continuar a reclamar do leninismo mas que ainda não perdeu a vergonha de assumir a social-democracia?

À luz dos últimos acontecimentos à escala mundial, tornou-se claro o que a direita pensa da função do Estado: quando se trata de fazer “business as usual”, o Estado deve ser tão pequeno, tão ausente e tão privado quanto possível; quando as coisas degeneram na pouca vergonha que se tem visto, que volte o Estado e traga consigo as memórias de Keynes e o dinheiro dos contribuintes para repor as coisas no seu devido lugar. A crise económica mundial, os seus fundamentos e as suas lições representam a morte ideológica da direita dita ‘liberal’ e dos seus mandamentos de fé. E a esquerda? Onde fica ela, que aprendeu ela agora, além da consolação de poder reclamar a ressurreição de Marx?

Pessoalmente, não acho aliciante passar a vida a discutir a separação de águas entre esquerda e direita e mesmo a discutir se o Estado deve ser o motor da economia, apenas o regulador e distribuidor de riqueza ou o intermediário e fornecedor dos grandes negócios privados, como, por exemplo, tem sido entre nós. A noção de Estado, tal como a aceito, está para lá da divisão esquerda-direita e para lá do seu papel na economia. Aquilo que eu acho que deve ser a função principal do Estado, a sua base legitimadora, é a prossecução do interesse público.

Não tenho grandes dúvidas de que não há interesse público em socorrer o BPP ou celebrar contratos como o da Lusoponte ou o da Liscont/Mota-Engil; em privatizar serviços essenciais, como o fornecimento de água ou electricidade; em recorrer à declaração de interesse nacional para autorizar construções turísticas em zonas protegidas ou em gastar milhões a perder de vista em auto-estradas, aeroportos, pontes e TGV que não são necessários e apenas para criar empregos transitórios e deixar a conta para pagar a sucessivas gerações de contribuintes.

Mas também não tenho grandes dúvidas de que o interesse público não consiste na protecção aos preguiçosos ou na manutenção de ‘direitos adquiridos’ dos trabalhadores que são um obstáculo ao desenvolvimento económico do país e uma forma de exploração dos que trabalham a sério. Acredito que a prossecução do interesse público envolve o sacrifício de muitos interesses corporativos instalados e que as tais ‘esquerdas’ adoptam levianamente como território sagrado.

Não basta intitular-se trabalhador, reclamar-se de esquerda e desfilar na rua, para se passar a ter razão moral ou política. O Estado não pode ser a soma de vários egoísmos corporativos, sustentado pelo sacrifício de uns poucos. Não deveria bastar a um projecto político de esquerda dizer: “Está descontente? Marche connosco!”. Pelo contrário, não vejo o que o dispensaria de fazer a cada um a pergunta suscitada pela célebre frase de Kennedy: “O que faz você pelo seu país que justifique o seu descontentamento?”. Mas, para isso, é preciso primeiro definir o que deve ser o Estado. Até onde deve ir e onde deve parar. Uma questão velha como o mundo.

Por: Miguel Sousa Tavares

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