Arquivo

Espetáculo europeu – maio de 2014

Agora Digo Eu

A companhia chegou. Bem conhecida do grande público, conta com a participação de atores de categoria. Todos cabeça de cartaz. São tão bons e de rara craveira que o melhor é ordená-los alfabeticamente: Assis, João, Marisa e Rangel. Com as caras maquilhadas, traje a condizer, voz afinada e dicção perfeita, o espetáculo começa. Ouve-se por detrás da cortina as 3 pancadinhas de Moliére. Acendem-se os projetores, apontam-se as câmaras: Ação.

O cenário é o seguinte: os atores estão sentados à volta de uma mesa redonda, todos eles representando o papel de candidatos ao Parlamento Europeu. O entrevistador faz as apresentações e sem demora dispara a primeira pergunta, abrindo desta forma as hostilidades: “O que o leva a correr para Bruxelas?”.

Calhou, em sorteio, que o primeiro a falar fosse Rangel.

– Ora bem. Penso sinceramente que os trabalhadores, os pequenos empresários, os pobres e as classes mais desfavorecidas podem contar com a minha experiência no Parlamento Europeu para os defender. Para apostar em criar riqueza e emprego. Para que os jovens tenham futuro em Portugal. Para defender as candidaturas portuguesas ao QREN até 2020, integradas numa política de coesão e assim relançar a economia.

– Olhe este – diz Assis – é isto mesmo que penso. Tirou-me as palavras da boca.

– Pois bem – diz o João – Estes dois são federalistas. Eu sou por Portugal e pelos Portugueses.

– Muito bem, camarada – diz Marisa.

– Camarada, uma ova. Vá lá chamar camarada a outro. O Bloco não tem hipótese. Nós, o PC, é que somos a verdadeira alternativa.

-Alto lá – diz Assis – A alternativa somos nós. E já agora gostava de saber porque é que o Rangel não aceite debate a dois.

– Bom – diz o entrevistador – Aqui a Marisa praticamente ainda nem falou.

– Vá lá. Até que enfim. E só quero dizer que a candidatura do Bloco reúne um quase consenso nacional. Os espetadores que tirem conclusões.

Esqueci-me de referir que à volta da mesa estavam mais alguns atores. Secundários, claro. Um deles, desde o inicio, que escrevia e tomava notas, sempre muito atarefado. O apresentador intrigado pergunta-lhe:

– Olhe lá, desde que iniciámos o debate tem estado a escrever. Pode dizer-nos o que está a fazer?

– Naturalmente – diz o ator secundário – estou a fazer contas.

Os quatro atores principais fizeram silêncio sepulcral.

– Explique-se – diz o entrevistador

– Veja e ouça bem: se eu for eleito deputado vou ganhar mais de 16.500 euros/mês. Dos 7.956 brutos, ficam limpos 6.200. Somo mais 304 euros por dia em reuniões e comissões e ainda os 4.299 de despesas gerais. Vou arrendar uma casita ou um sótão no bairro de Anderlecht. É barato e fica perto do centro da cidade. Nos dias de receção aos nossos compatriotas vou jantar, à borla no Falstaff ou no Bouchery. Nos outros vou comer umas “moules” e beber umas cerveijolas ao Chapeliers ou ao Bouchers, pertinho da Grand Place, terminando a noite no Fuse, Box Club ou no Nostalgia.

(Protestos. Muitos protestos dos outros atores).

– Se me permitem só mais um minuto para poder terminar os meus cálculos. Então é assim: Renda de casa, água, luz, gás, alimentação e roupa lavada, 1.500/ mês. Despesas pessoais mais 1.000. Significa que fico com mais de 14.500 euros limpinhos por mês. Isto vezes 12 meses a multiplicar por 5 anos. É só fazer contas. Agora analise. Eu sou funcionário público. Depois dos cortes do Coelho, Portas e Cª Ldª ganho 1.000 euros. Preciso de 40 anos de trabalho para ganhar metade do que vou poupar nos próximos 5 anos.

Ainda não tinha terminado e já os outros atores faziam ouvir um coro de protestos, falando todos ao mesmo tempo, dizendo que estavam ali por imperativo nacional, que não era pelo tacho. Que era por Portugal e prelos portugueses, etc. etc. etc.

O entrevistador lá conseguiu por ordem na mesa e após instantes de acalorada discussão, os atores, recuperando a calma, falaram finalmente da Europa, da construção europeia, das relações com a Rússia, por causa da Ucrânia. Palavras e pose que quase faziam lembrar homens e posturas de Estado. Duas horas passadas e o espetáculo terminou. A avaliação fica para o pouco público que ali acudiu. À saída um espetador, daqueles mais atentos, classificou assim os protagonistas “Todos bons atores”.

No dia seguinte a companhia rumou para outra cidade, representando a mesma peça, aplicando a máxima “No mesmo local dizem-se coisas diferentes, Em locais diferentes dizem-se coisas iguais”. E, como é certo e sabido, “the show must go on”.

Nota final: Qualquer semelhança com pessoas ou situações é apenas e tão só uma mera coincidência.

Por: Albino Bárbara

Sobre o autor

Leave a Reply