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Esperança

Vidas

Já tinha corrido todos os médicos que conhecia mais os que lhe indicavam e nada. Não havia chás, xaropes, remédios que resultassem. Nada resultava. E ela desesperada. Noites inteiras sem dormir. O choro de dor pareciam gritos de ajuda. O seu bebé. O seu tesouro. E agora, meu Deus, e agora. O seu primeiro filho, o seu único filho. E agora?! Há uma mulher. De nome Esperança. Meu Deus, porquê o meu filho? Porquê eu? Que pecados cometi, porque sou castigada desta maneira? O meu filho. O seu rico filho. Não perdes nada. Dizem que é mesmo boa. A casa dela fica lá no fim do povo. Foi. Cheia de medo, mas foi. As mãos trémulas aconchegavam um choro de desespero, um choro vestido de pele e ossos. Era o que restava da criança rosada e gordinha que dava gargalhadas e até já fazia pininhos. E um dia não aguentava o leite. E outro dia a vomitar. E trinta dias de diarreias. De lágrimas. De vómitos. De diarreias. Um biberão de leite, uma fralda suja. Trago-lhe o meu filho. Ajude-o. Por favor. Não preciso de ver a tua criança, dá-me apenas a sua chupeta. Deu-lha com toda a fé. Esperança. Seria mesmo o seu nome? Toda vestida de preto. E umas mãos grandes. Tão grandes. Mãos de homem numa velha, pequenina, ar frágil e mãos fortes, compridas e gastas. As veias grossas como uma corda de criança aos nós e aos pulos. As rugas vincadas na sua pele amarelada, como folhas de um livro velho e usado, marcavam histórias de vidas. E eram muitas. Analisou então a chupeta. Uma análise quase científica. Virava e revirava, numa procura inconstante de males ocultos. E esteve naquilo mais de quinze longos minutos. Fazia caretas, encolhia os ombros, abanava a cabeça em jeito de reprovação e articulava uns sons indecifráveis. Tinha uns olhos pequeninos e vidrados, de uma cor imperceptível. Finalmente, como se tivesse descoberto um enigma, estendeu-lhe a chupeta e, sem nunca a olhar de frente, disse. Deverás recolher num copo de vidro, que nunca poderás largar da tua mão, nove colheres de leite de nove casas diferentes de gente cá da terra. Metade desse leite irás dá-lo à tua criança, a outra metade deverás dá-la a um cão, o mais longe possível da tua casa, mas dentro do povo. Aos nove anos de idade o teu filho deverá ser entregue ao Senhor. Diz quem ouviu que nessa noite o cão da Encarnação uivava como um lobo. E no dia seguinte morto à porta da igreja. O pequeno João a mamar ferozmente no seu biberão. A ganhar cor. A voltar à vida.

Por: Carla Freire

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