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Era uma vez…

Esferorragia

São 7.00 da manhã e o Dr. E.P. está sentado à mesa começando a tomar o seu pequeno almoço que, como habitualmente, é farto e variado não prescindindo nunca de leite com cereais, sumo de frutas, pão (a sério), queijos, compotas e o inevitável chá. De fundo, um som de rádio emitindo umas musiquinhas com notícias à mistura. Pergunta-me se quero café presumindo ser meu hábito, o que aceito. Pelas 7.30 sai (saímos) de casa, uma magnífica moradia sem luxos supérfluos mas com tudo o que é preciso numa inteligente combinação de economia quase espartana de meios com o máximo de funcionalidade situada na periferia da pequena cidade de província. Sem ultrapassar os 60 km/h percorremos a curta distância até ao local de trabalho num automóvel de gama média, cuja marca já nem me lembro, através de uma simpática estradinha periférica irrepreensivelmente cuidada (piso, sinalização, bermas, tudo), cruzando de quando em vez com outras viaturas. «Muitas vezes saio de casa um pouco mais cedo e venho de bicicleta, é uma magnífica maneira de começar o dia principalmente quando está bom tempo, como muita gente…», disse-me com um sorriso e sem tirar os olhos da estrada.

Uns minutos antes das 8.00 chegámos a um magnífico edifício de piso único de cujos materiais de construção sobressaiam a pedra, o tijolo e a madeira, mais parecendo uma pequena pousada de bosque, tratando-se no entanto do centro médico do qual o meu colega era um dos donos juntamente com outros 5 clínicos gerais. O interior do centro médico obedecia a uma organização racional que até doía de tão perfeita, mas não vos vou maçar com pormenores desses. E que bonito e confortável que era! Toda a gente que lá trabalhava e que tinha sido criteriosamente contratada ao longo do tempo estava a postos para mais um dia de trabalho.

Às 8.00 da manhã em ponto o Dr. E.P. estava sentado à sua secretária de trabalho, computador a postos para utilização dos registos clínicos, auricular e microfone telefónicos ajustados à cabeça, como qualquer telefonista, e durante uma hora mais não fez (e tanto que fez) do que atender chamadas dos seus pacientes resolvendo por esse meio as situações que se lhe foram deparando(conselhos, indicações de terapêutica sem necessidade de consulta presencial, marcação de consultas para esse próprio dia ou outro conforme a necessidade) e essa era (e deve continuar a ser) uma rotina daquela primeira hora de trabalho. A partir das 9.00 começaram as consultas propriamente ditas com os pacientes marcados para esse dia, com hora sujeita a pequenas flutuações de circunstância. Em perfeita coordenação com a sua (salvo seja) enfermeira o trabalho foi decorrendo serenamente e com uma competência técnica que me fez sentir um autêntico aprendiz. Como equipamento básico de suporte para as consultas constavam, entre outras coisas, um eco-doppler e um electrocardiógrafo. As colheitas de sangue para análise, quando necessário, eram feitas logo ali sendo inclusivamente executadas também ali as análises mais correntes. Todos os registos clínicos eram feitos utilizando um programa informático passível de se articular em rede com outros existentes noutros centros médicos ou hospitais. Só vi utilizar a caneta para assinar documentos.

Às 11.00 da manhã, um pequeno intervalo rotineiro de 10 minutos proporcionava um momento de descontracção ao sabor de um cházinho e umas bolachitas e em que a conversa incidia sobre qualquer coisa excepto o trabalho (trabalho é trabalho, conhaque é conhaque, neste caso chá, tal e qual).

Às 13.00 tempo para almoçar, constando invariavelmente o repasto de uma refeição ligeira, normalmente composta por uma fantástica sanduíche de pão a sério, uma boa fatia de carne assada ou salmão fumado e vegetais, chá e fruta. A leitura de jornais diários e dois dedos de conversa completam a hora de almoço.

Às 14.00 de novo em consulta e às 16.00 chegava a hora das consultas domiciliárias previamente marcadas e no máximo de 3 (remuneradas à parte, mas isso também é outra história). A partir das 17.00, normalmente (e excepto quando em serviço de urgência, no próprio centro médico, claro) está acabado o dia de trabalho e ainda há muito tempo para viver a família e os amigos, o futebol e o golfe, os passeios de bicicleta e os fins de tarde nos parques (mais que muitos e cada um mais belo que os outros, e onde se pode pisar a relva à vontade mas aonde não lembra a ninguém deixar o mais insignificante papelito no chão), os jantares em casa e as cervejolas na rua. Garanto-vos que nada disto é ficção porque ou andei alucinado uma semana ou vivi isto diariamente em Odense (terra natal de Andersen, o dos contos), uma simpática cidade de província dinamarquesa pouco maior que a Guarda, tendo como anfitrião o meu ilustre colega e amigo Dr. Eric Pedersen, já lá vão 6 anos.

Por: Vasco Queiroz

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