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Entre Londres e Gleneagles

Theatrum mundi

Vale a pena recordar, nos dias que correm, que a cobertura das tragédias globais se tornou numa das principais apostas da televisão enquanto meio de comunicação social e mecanismo de entretenimento, essa forma tão híbrida e tão ocidental de assistir ao que se passa no mundo a partir de um claro sentimento de auto-complacência. O que é mais, o pivot de telejornal, o jornalista destacado para cobrir o evento, a voz-off ou o comentador, todos participam no mesmo exercício que resulta na criação dessa categoria de tragédia global, isto é, na legitimação da marca global que recai sobre uns acontecimentos e que é negada a outros, sempre, já se vê, orientada por critérios editoriais objectivos… De tal modo que só pode “aspirar” à categoria de tragédia global aquela que assim for rotulada pelas televisões e que conseguir atrair sobre si as suas atenções e os seus meios de difusão. Contudo, o mundo está cheio de tragédias silenciosas que a televisão ignora e que resiste a legitimar.

Não é de estranhar que, desde Setembro de 2001, os ataques terroristas sobre alvos civis se tenham tornado candidatos de primeira ordem à categoria de tragédia global, construída laboriosamente pelas televisões e agências noticiosas. O ataque às torres gémeas de Nova Iorque mudou o mundo, como se passou a dizer, sobretudo porque determinou a visão hegemónica do que é considerado insegurança global e de como o sentimento de insegurança é comunicado, ilustrado, instilado na opinião pública. Mudou o mundo porque nos obrigou a pensar no impensável e com isso aumento a auto-complacência do mundo ocidental: a dor, o sofrimento e o pesar reflectidos sobre si próprio, motivados pela perda de uma segurança considerada inabalável. Desde então, o impensável repetiu-se e deu origem a uma verdadeira iconografia “global”: o onze-de-setembro, o onze-de-março, o sete-de-julho… Não é preciso especificar para entendermos do que se trata e para revivermos o que aconteceu… filtrado, isso sim, pela forma estetizada como a televisão se empenha em mostrar a dor nesses cenários. As televisões portuguesas, por exemplo, insistem em apresentar breves genéricos a anteceder a cobertura em directo da tragédia, como se se tratasse de um programa de ficção ou como se não fosse bem só mais uma notícia. Sob a inspiração de uma música sempre grave, esses genéricos introduzem os factos e os actores principais que na maioria das vezes parecem ser os próprios jornalistas com a suas tiradas apoteóticas! Invertem-se as prioridades e o entretenimento já tomou conta da linha editorial.

E entretanto, a agenda que dominou a cimeira dos dirigentes do G8 passou quase desapercebida na televisão portuguesa, independentemente dos seus resultados concretos. Talvez porque se tratasse da discussão de tragédias mais ou menos silenciosas como a pobreza, a malária ou a escassez de água potável em África e o aquecimento global. Talvez porque seja mais difícil produzir a identificação do espectador ocidental com tais factos. Talvez porque os factos em causa obriguem mais a reflectir sobre a responsabilidade ocidental pelo estado do mundo do que a insistir na auto-complacência que o mundo ocidental projecta sobre si próprio, também com a ajuda da comunicação social. Talvez porque as vítimas sejam anónimas e não disponham da fleuma britânica, do seu carácter imperturbável face à tragédia… Talvez porque se acredite que as tragédias no Terceiro Mundo são sempre tragédias naturais e que as que ocorrem no nosso são sempre impensáveis. O que é verdade é que a cimeira de Gleneagles não mereceu a deslocação dos jornalistas e das câmaras, entretanto atraídos pela procura incansável de informar o público acerca do número de mortes dos ataques de Londres e das medidas do governo britânico contra a ameaça islâmica.

Por: Marcos Farias Ferreira

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