Arquivo

Em busca do tempo perdido

o que há para ver

Há um provérbio sobre a irreversibilidade do tempo que circula, sob diversas formas, pelas obras e fragmentos de muitos autores da Grécia Antiga. Entre eles conta-se Aristóteles, que na sua “Ética a Nicómaco” (1139b) o formula nos seguintes termos (mais coisa, menos coisa): «Apenas isto é negado até a Deus:/ O poder de desfazer o que foi feito.» Já na contemporaneidade, Schelling dirá algo de semelhante na sua “Philosophie der Offenbarung” (a saber: que o poder de voltar atrás não configura um atributo divino) e Jankélévitch definirá mesmo a temporalidade irreversível como o problema filosófico por excelência (leia-se “L’Irréversible et la Nostalgie”).

Perguntar-me-ão agora, e não sem pertinência, de que modo se relaciona este exercício de pirotecnia cultural com o novo filme de Tony Scott (cineasta que, aviso desde já, não tem por hábito fazer as minhas delícias). Aparentemente, de modo nenhum. Que relação poderia haver, de resto, entre a alta costura filosófica e um “thriller” policial de ficção científica que assinala a sexta colaboração entre Scott e Jerry Bruckheimer, ou melhor, entre um dos mais estereotipados realizadores de Hollywood e um dos mais fastidiosos produtores de “blockbusters” de que a história do cinema guarda memória (recordemos aqui que a dupla Scott-Bruckheimer foi responsável, entre outras coisas, pelo retumbante sucesso comercial de “Top Gun – Ases Indomáveis”)?

O despropósito do paralelismo não é, porém, assim tão evidente. De facto, por estranho que possa parecer, “Déjà Vu” está bastante longe de constituir o objecto convencional, escolástico e comezinho que muitos (entre os quais eu próprio) estariam à espera que fosse. Não tanto por obra e graça da realização de Scott (que continua a primar pelos efeitos fáceis a que já nos acostumou: banda sonora desnecessariamente enfática, montagem frenética repleta de “ralentis” retóricos, etc.) como por mérito de um argumento descabelado que mescla atentados terroristas, o tema da predestinação e viagens no tempo para diagnosticar a grande neurose colectiva com a qual hoje se debate a sociedade americana, ou seja: a impossibilidade de desfazer o que fez ou deixou que fosse feito (Oaklahoma; 11/9; Segunda Guerra do Golfo; devastação de Nova Orleães pelo furacão Katrina).

Com efeito, à imagem e semelhança do que sucede com diversos trabalhos de ficção científica americanos dos anos 50, que se debruçam sobre a Guerra Fria sem nunca chegarem a nomeá-la explicitamente (“Fluido Mortal”, de Irvin S. Yeaworth Jr., por exemplo), também “Déjà Vu” parece ostentar a pretensão de comentar de forma sub-reptícia um conjunto de dolorosos factos políticos que, em virtude da sua excessiva proximidade no tempo, se furtam à possibilidade de uma representação imediata.

Como diz?… Que deliro?… É provável que sim. Mas tenho cá para mim que não deixará de me dar razão se porventura se der ao trabalho de reduzir as principais etapas narrativas do filme (assim como a lógica que preside ao seu encadeamento) à sua expressão mais simples, isto é: a) ocorrência de um atentado terrorista em Nova Orleães (cuja recente devastação Scott retrata “en passant”), perpetrado por um fanático que tenta vertebrar um discurso providencialista estranhamente análogo ao do Presidente Bush; b) início de uma investigação policial encabeçada por Denzel Washington que se destina a apurar o autor do atentado; c) regresso ao passado de Washington numa tentativa de alterar o rumo dos acontecimentos (ou o irreversível).

Como diz?… Que estou à procura do sentido da vida na valeta?… Bem… É uma opinião a ter em conta. Mas o que é que quer que eu faça? É que estou mesmo convencido que daqui a alguns anos se olhará para “Déjà Vu” da mesma forma que hoje se olha para os filmes de ficção científica americanos dos anos 50: com aquele misto de distanciamento irónico e de fascínio arqueológico que nos leva a perguntar: «Como foi possível que ninguém tivesse achado graça a isto na altura?» Tudo bem… Não insisto. Aliás, tenho mesmo de ficar por aqui. É que já estou a ver a enfermeira a caminhar para o meu quarto em passos largos com o colete-de-forças na mão.

Por: Vasco Baptista Marques

Sobre o autor

Leave a Reply